Friday, June 30, 2006

 

OS ESQUERDISTAS - III CAPÍTULO


III

(Num dos muitos cafés da cidade de Ponta Delgada, várias personagens conversam baixinho.)

PRIMEIRO SITUACIONISTA
O marquês foi preso esta manhã. Disseram-me que mantinha o ar altivo de sempre.

SEGUNDO SITUACIONISTA
É um inimigo do regime.

PRIMEIRO BUFO
Por essa razão se mantém sempre magro.

SEGUNDO SITUACIONISTA
É o vício da elegância!

TERCEIRO SITUACIONISTA
O que pode fazer o dinheiro!

PRIMEIRO SITUACIONISTA

Mas não o livrou da “Boa Nova”.

SEGUNDO SITUACIONISTA
É-se preso por roubar! Mas por dar?

PRIMEIRO BUFO
Se é do Estado é roubo na mesma!

TERCEIRO SITUACIONISTA
Não se pode dar assim sem mais nem menos!

SEGUNDO SITUACIONISTA
E as esmolas?

TERCEIRO SITUACIONISTA
Nunca mais dou esmolas!

PRIMEIRO SITUACIONISTA
Cadeia sem condição. Dizem que os presos nem têm retrete.

SEGUNDO SITUACIONISTA
Viram a mulher do marquês carregando um penico numa carrocinha de carneiro lá para as bandas da Calheta.

TERCEIRO SITUACIONISTA
Que escândalo!

SEGUNDO SITUACIONISTA
Põem o Estado Novo no ridículo. Depois não se queixem.

TERCEIRO SITUACIONISTA
A gente vive em paz e o povo não passa fome.

SEGUNDO SITUACIONISTA
Os meus rendeiros até que estão bastante anafados.

TERCEIRO SITUACIONISTA
Deve ser da batata e das couves aferventadas. Não têm razão de queixa.

SEGUNDO SITUACIONISTA
Não se compreende como é que o marquês não vê isso.

PRIMEIRO BUFO
Se o problema fosse só esse. O marquês, imaginem, quer que todos tenham as mesmas oportunidades e sejam instruídos. Que malandrice!

SEGUNDO SITUACIONISTA
Aonde é que íamos parar? De que serviria todos saberem ler? Quem cavaria a terra? Ora o safado!

TERCEIRO SITUACIONISTA
Sempre há-de haver ricos e pobres, gemidos e risos.

SEGUNDO SITUACIONISTA
Aleijados e muita terra para lavrar!

PRIMEIRO BUFO
E andou Cristo na Terra a fazer milagres e a pregar aos pobres.
SEGUNDO SITUACIONISTA
Para saber isso não é preciso andar na escola.

TERCEIRO SITUACIONISTA
Que se saiba, Cristo não escreveu nada.

SEGUNDO SITUACIONISTA
Mais me ajudas!

TERCEIRO SITUACIONISTA
O homem deve ser ateu.

PRIMEIRO SITUACIONISTA
Um ateu sem alma, sem sentimentos e sem amor cristão.

SEGUNDO SITUACIONISTA
Como terá casado?

PRIMEIRO BUFO
Sem sacramentos!

PRIMEIRO SITUACIONISTA
Nem é de Deus temente!

TODOS EM CORO
(Benzendo-se)
Vive em pecado. É do Inferno cliente!

PRIMEIRO BUFO
Na construção do Império, a terra foi adubada com o sangue dos heróis que a tomaram e a cobriram. Hoje, há quem não queira assumir a herança dos que nos geraram. (Em voz alta) É crime lesa-pátria!

SEGUNDDO SITUACIONISTA
Será condenado!

TODOS EM CORO
Olaré! Olaré! Rebelião é que é!
(Entra o Segundo Bufo e dirige-se ao grupo. Ao mesmo tempo dá a ideia de estar a contá-los.)
SEGUNDO BUFO
Mais de dois é conjura púnica. (Ri-se) Novidades?

PRIMEIRO BUFO
(Com ar intriguista)
O costume. Uns com Deus e outros sem Ele.

SEGUNDO BUFO
Sei do que se passa. Só Deus o pode salvar. Mas até da Sua verdade ele duvida.

TERCEIRO SITUACIONISTA
Deus existe há tanto tempo.

SEGUNDO SITUACIONISTA
Por isso mesmo devia ser mais creditado.

PRIMEIRO SITUACIONISTA
Os milagres que Ele já fez!

TERCEIRO SITUACIONISTA
Só em Portugal, já se lhes perderam a conta.

PRIMEIRO SITUACIONISTA
Deus protege os nossos governantes.

SEGUNDO SITUACIONISTA
Apareceu a Dom Afonso Henriques para lhe dar ânimo e forças para cortar o pescoço aos mouros.

PRIMEIRO SITUACIONISTA
E há mais!

SEGUNDO SITUACIONISTA
Fez do Infante Dom Fernando um santo por ter morrido à fome nas masmorras dos infiéis.

PRIMEIRO SITUACIONISTA
E há mais!

SEGUNDO SITUACIONISTA

Desenrascou a Rainha Santa transformando-lhe as esmolas em rosas par o marido não lhe moer a paciência.

PRIMEIRO SITUACIONISTA
E há mais!

SEGUNDO SITUACIONISTA
Fecundou e loteou a Cova da Iria.

PRIMEIRO SITUACIONISTA
E há mais!

SEGUNDO SITUACIONISTA
Pensas em Salazar?

PRIMEIRO BUFO
Se não fosse o Bispo do Porto...

SEGUNDO SITUACIONISTA
Afonso Henriques fez o mesmo e Ele apareceu-lhe na mesma.

SEGUNDO BUFO
Meus amigos, o herege encarcerado não acredita em nada disso. Quando lhe falam em Afonso Henriques, Santa Isabel e no Infante Santo gargalha. Do milagre de Fátima jura de mãos postas que os pastorinhos não falavam aramaico.

SEGUNDO SITUACIONISTA
Nem a tanto o Diabo se atrevia. Como é possível ser-se assim? Ainda o ano passado quando fui com minha mulher a Fátima pude ver com os meus próprios lhos.

PRIMEIRO BUFO
Dizem que há lá muito hotel para turista e muito bom negócio com santinhos.

SEGUNDO SITUACIONISTA
Achei tanta graça à caminha da vidente Lúcia.

PRIMEIRO BUFO
Não é a vidente uma mulher forte e pesada? Ainda tem caminha?

SEGUNDO SITUACIONISTA
A caminha é muito modesta e encontra-se no mesmo estado de quando ela era criança. Os peregrinos atiram moedas para cima da colcha que a cobre, fazendo preces.

PRIMEIRO BUFO
Havia lá muita moeda?

SEGUNDO SITUACIONISTA
Muita mesmo. Disseram-me que desaparece durante a noite.

PRIMEIRO SITUACIONISTA
Ainda dizem que não há milagres!

PRIMEIRO BUFO
(Para o Segundo Situacionista)
Atiraste para lá alguma moeda?

SEGUNDO SITUACIONISTA
(Muito encarnado)
Não tinha trocado!

SEGUNDO BUFO
Deus tudo perdoa!

SEGUNDO SITUACIONISTA
Que Deus não me leve deste mundo sem lá ir outra vez. Quero atirar uma mão cheia de moedas para a caminha da querida vidente. Apesar de o meu confessor dizer que as posso enviar de cá através da caixa das esmolas, eu não deixarei de o fazer. É cá uma ideia pegada.

SEGUNDO BUFO
É assim que se ganha o Céu.

( Para amanhã, dia 1 de julho: IV cap.) Posted by Picasa

Thursday, June 29, 2006

 

OS ESQUERDISTAS - CONTINUAÇÃO do DIA 29


II
(Num dos salões do Clube, Dom António conversa animadamente com um alferes recém-admitido no círculo.)
DOM ANTÓNIO
Conto consigo para levar a cabo a tarefa que me propus. Investirei na Educação. Criarei um centro ideológico encapotado num colégio que ministre o ensino oficialmente adoptado. Denominá-lo-ei Real Colégio do Infante para calar os esbirros da ditadura.
ALFERES
Farei o marxismo possível.
DOM ANTÓNIO
Você leccionará a disciplina de matemática.
ALFERES
Então, matematizarei a catequese e desmitologizarei as estruturas da moral oficial. Através do número, reduzirei a lógica salazarista à expressão probabilística. Tudo pelo número. Tudo quantificarei. Cientificarei as falsas qualidades dos arrivistas.
DOM ANTÓNIO
Não proíba as favas nem a carne de porco. Basta de seitas pré-socráticas.
ALFERES
O meu discurso é o cientifico. Os desertos da ignorância serão cobertos pela intimidade da sabedoria. Cesse a certeza. O condomínio da dúvida, que os sábios assenhoreiam , transbordará possanças aos surpresos mortais.
DOM ANTÓNIO
“La raison du plus fort est toujours la meilleure.” Ibidem.
ALFERES
Este povo autóctone está isento de senso político, mas recheado de impostos. Não poderemos viver tranquilos nem envelhecer nababescos enquanto não subvertermos os valores por que se rege.
DOM ANTÓNIO
Organizemos a educação de base. Sistematizemos o trabalho. Promovamos a tendência cooperativista. Orientemos política e humanisticamente estes veneráveis e pacíficos observadores do universo dos sentidos.
(Enquanto conversam o marquês e o alferes Antunes, as fortunas casadoiras rebolam-se no passeadoiro valsejante das intenções. O alferes, aproveitando intervalos de prosa esquerdista, vai quantificando tudo à sua volta e ao mesmo tempo distribui sorrisos económicos).
ALFERES
(Levemente bacanalizado)
Evoé!
DOM ANTÓNIO
Intervalemos os nossos pensamentos. Vejo que você também é humano. É preciso, por vezes, detonar as nossas recônditas sensibilidades. Deixemos, por hoje, a revolução. Amansemo-la um pouco.
(A orquestra envia sons valsejantes. O alferes despede-se do seu correligionário e, apresta-se para, com ar pouco castrense, não magoar a cera ciosa dos velhos sobrados, única capaz de distinguir pezunhos de pés. Dom António retira-se e ao passar por um grupo de senhoras, tão ilustres quanto os espelhos da velha mansão, estas discretamente persignam-se.
(Conclusão do II episódio. Amanhã, dia 30 continua)
 Posted by Picasa

Wednesday, June 28, 2006

 

OS ESQUERDISTAS - DIÁLOGO -


OS ESQUERDISTAS”
Dedico este texto de 1986 à memória do advogado e humanista João SILVESTRE Pacheco

( Cidade de Ponta Delgada, Ano da Graça do Senhor Bom Deus de 1969. Palácio do Marquês. Salão interior decorado sobriamente. Nas paredes, duas pinturas: Proudhon e um velho senhor da casa. É de noite, a iluminação faz-se à luz de vela. Acordes harmoniosos do prelúdio ao primeiro acto da Carmen de Bizet ouvem-se ao longe: é o filho mais velho de Dom António ao piano.)

DOM ANTÓNIO
(Abrindo uma garrafa de Moscatel de 1941)
“A propriedade é um roubo” (P.J. Proudhon, in A Santa Família) meus senhores! (Já de copo meio cheio e em frente à pintura do revolucionário) “ A salvação não é uma evasão para o céu como o faz o cristianismo, mas uma realização terrena.” (Paul Nizan, in Os Materialistas da Antiquidade)
SILVESTRE
(Apreciando a cor do vinho no contraste do copo com a luz da vela)
Ah!, casta moscatel.
BARBOSA
Generoso! Muito generoso! (Estala a língua como um escanção)
DOM ANTÓNIO
(Distante, sóbrio e distinto. Quase inglês.)
Aromático e personalizado. Uma relíquia!
(A mulher do marquês entra no salão dançando a chamarrita.)
MARQUESA
Ó António! Ó António! O António Salazar paga-nos as listas!
SILVESTRE
Qual foi a nossa percentagem nas urnas?
MARQUESA
Vinte e dois por cento!
TODOS EM CORO
Bravo! Abaixo o regime dos detritos!
(A vela apaga-se com o sopro dos revolucionários.)
MARQUESA
É o obscurantismo! É a negra noite que continua.
DOM ANTÓNIO
(Chamando a criada inglesa)
Mary! Mary!
(A marquesa toca a campainha de prata que traz à cintura.)
MARY
(Abre a porta e olha o fumo que sai do pavio da vela)
Happy birthday to you, dear Sir...
DOM ANTÓNIO
Luz! Quero luz!
(A criada inglesa manobra o interruptor que volta a abrir o circuito eléctrico iluminando todo o salão.)
SILVESTRE
Festeje-se o bafo popular, que nem só do pão vive o homem, ó marquês!
DOM ANTÓNIO
Mary, ide à cave e trazei-me “Torna Viagem”!
SILVESTRE
Ah, casta histórica!
(Entra um olheiro)
DOM ANTÓNIO
(Para o olheiro)
Que novas trazeis?
OLHEIRO
(Olha para o saco que segura com ambas as mãos fazendo um certo esforço.)
Ouro, meu senhor!
MARQUESA
Ah, as rendas!
DOM ANTÓNIO
(Para a marquesa)
Levai daqui a identidade bestializada do capitalismo! (Aponta para o saco do ouro e olha para o óleo de Proudhon que se despega da parede fazendo um enorme ruído quando atinge o sobrado.)
(Todos se assustam)

BARBOSA E SILVESTRE
(Erguendo os copos)
“Para lisonjear o povo é preciso oprimir os ricos.” (Aristóteles, in Tratado da Política.)
(A marquesa e a criada inglesa saem carregando ambas o saco das rendas)
DOM ANTÓNIO
É com o capital que a classe dominante transforma os produtos em mercadoria. Eu não o permitirei. Arrecadá-lo-ei!
BARBOSA
Claro! Claro! No capitalismo tudo se converte em mercadoria. Fazeis bem! Procedeis com justiça!
OLHEIRO
(Para dom António)
Mas fica o senhor com o ouro?
BARBOSA
Até que está bem. É uma medida que impede a criação de uma nova burguesia.
SILVESTRE
O povo curvado, a terra cavada, o rosto suado...
DOM ANTÓNIO
Os servíveis de hoje serão os senhores de amanhã.
OLHEIRO
E até lá?
DOM ANTÓNIO
Vão consumindo. São consumidores.
OLHEIRO
O povo consumido. Hum!
(Entra a criada inglesa, trazendo várias garrafas do histórico “Torna Viagem”.)
MARY
Dear Sir, your wine please.
TODOS EM CORO
Vivamos a alegria da comunização da propriedade, dos meios de produção e da troca. A sociedade ideal é a comunidade fraternal!
SILVESTRE
Bebamos!
OLHEIRO
(A quem fora distribuído um copo cheio de “Torna Viagem”.)
É chá?
TODOS EM CORO
Abaixo a ordem capitalista!
Abaixo o salazarismo!
Abaixo o clericalismo!
Fim da guerra colonialista!
(Bebem os copos)
OLHEIRO
(Bebido)
O povo é governado pelos senhores?
BARBOSA
Os senhores são a classe dominante.
SILVESTRE
Os ricos são a classe dominante.
DOM ANTÓNIO
“Quand ce sont les riches qui imitent ce gouvernement, nous nommons ce gouvernement lá aristicratie, et, quand ils ne s´inquiètent pas des lois, oligarchie.” (Platão, in Político)
SILVESTRE
É preciso que se retractem. Eu sonho o progresso no amplexo universal do belo ao social.
BARBOSA
“Escarro na beleza e nos seus vãos admiradores, quando ela não produz nenhum prazer.” (Paul Nizan, in Os Materialistas da Antiquidade)
DOM ANTÓNIO
A mais-valia arrecadada é para alguns um prazer.
SILVESTRE
Parasitagem milenária.
OLHEIRO
Conversa fiada.
BARBOSA
O homem adora o ouro mas vive do trigo.
OLHEIRO
Eu o planto, outros o comem.
BARBOSA
São os burgueses e esses até os deuses desafiam.
SILVESTRE
E vencem-nos na velhice.
DOM ANTÓNIO
(Dirige-se ao olheiro mas olha para Barbosa)
E não só. Até as normas e as relações feudais destruíram.
OLHEIRO
Os burgueses são progressistas?
SILVESTRE
E os deuses também!
OLHEIRO
O cemitério dos deuses e dos burgueses é um lugar aprazível. “ Como é possível que a burguesia arraste consigo ideias progressistas se ela tem os operários na conta de bestas de carga?: é preciso que este gado trabalhe, mas não dê coices: é necessário, pois, não só espancá-lo e fuzilá-lo, assim que ele escoiceie, como também domesticá-lo, como fazem certos especialistas nos picadeiros.” (Bukharin, in ABC do Comunismo.)
DOM ANTÓNIO, SILVESTRE E BARBOSA
(Com as mãos sobre o peito)
Os juristas regimentaram as leis revolucionárias.
OLHEIRO
(Que continua a beber grandes quantidades de vinho)
De imposto pago tanto como o marquês e só tenho de meu dois alqueires de terra. Se isso é progresso... que se lixem as leis! Estas só servem os senhores e as suas liberdades.
SILVESTRE
O legislador não dorme. As leis terão de ser sempre revistas.
DOM ANTÓNIO
É por isso que lutamos.
OLHEIRO
Onde?
DOM ANTÓNIO
Nas masmorras, contra a polícia e o exército opressor.
OLHEIRO
Mas vossa senhoria não vê que tudo isso faz parte do folclore da burguesia!
BARBOSA
É a dialéctica! É o processo histórico!
SILVESTRE
São as leis do equilíbrio. São os reguladores hegemónicos da sociedade. São as propostas escatológicas impostas pelos deuses ao homem.
OLHEIRO
Tenho os bolsos rotos. Como o pão que amasso. No Inverno, é à lareira que sucumbo ao frio da noite. No Verão, tenho o suor como refresco. No império dos sentidos, sou escravo das suas permissões.
DOM ANTÓNIO
O equilíbrio não se encontra enchendo os bolsos, mas cosendo-os. É preciso caminhar a igualdade.
SILVESTRE
É preciso assumir a felicidade.
(O olheiro sai. No corredor do palácio encontra-se com duas serviçais que tinam estado a escutar à porta a conversa.)
PRIMEIRA SERVIÇAL
Querias ser igual aos senhores. É muito para ti, beiços de burro.
SEGUNDA SERVIÇAL
Passa a vida a imitar os patrões. Ontem, até fingia estar a ler o jornal.
PRIMEIRA SERVIÇAL
Pudera, o luxo é tanto que a mulher anda calçada a fazer de “madama”.
SEGUNDA SERVIÇAL
Só visto, aqueles pés de cascalho! Se calhar usa meias?
OLHEIRO
(Apalpando o rabo à primeira)
Meias também te dou!
SEGUNDA SERVIÇAL
Maricas!
PRIMEIRA SERVIÇAL
(Rindo muito)
Eguariço de uma figa!
(Fogem ambas, enquanto o olheiro entusiasmado as persegue de mãos nos bolsos.)

Fim do 1º. Capítulo. Continua amanhã dia 29.

Tuesday, June 27, 2006

 

NO REINO DOS APEDEUTAS - CONCLUSÃO


“REINO DOS APEDEUTAS”
V
(No espaço sideral Zeus, Júpiter, Jeová e Alá encontram-se refugiados refugiados na sala das orgias celestes.)
ZEUS
(Fazendo o ponto da situação)
O resultado de termos admitido milicianos celestes nas nossas hostes foi desastroso. Os conjurados são chefiados por um dos acólitos de Jeová.
ALÁ
(Para Jeová)
Deste-lhes muito força. Bastou ofertarem-te ofícios em tua honra durante quarenta e oito anos para os promoveres a pró-divindades poderosas.
JEOVÁ
Fi-los à minha imagem e semelhança com a melhor das intenções.
(Batem à porta da sala do Quarteto celeste. Alá, o mais novo, vai abri-la. Leva um turbante na cabeça.)
ALÁ
Quem é?
ALMA PENADA
(Vestido com hábito secular)
Sou Cerejo (nome “celestializado” de Cerejeira) da tribo do Quarteto de Jeová: frade que fui de meio mundo, venho pedir perdão por ter aderido à revolta dos milicianos celestes.
ALÁ
(Chamando por Jeová)
É para ti (sopra na direcção do co-deus). Diz que que é um frade de meio mundo, teu valido e que te vem pedir perdão.
JEOVÁ
Deixa-o entrar.
(Cerejo entra de cabeça baixa, com o sorriso velhaco de sempre.)
CEREJO
(Para Jeová)
Senhor, deus de um quarto celestial! Tu sabes o que são os pecados. Tu os distribuíste prodigamente pelos teus filhos. Permite a remissão dos meus que eu te serei fiel nos dez séculos seguintes qual Penélope da tribo de Zeus. (Pisca o olho na direcção de Jeová.
Jeová ri em si)

(Debaixo das saias de Cerejo encontra-se Demo Sazar (nome com que Salazar era conhecido nos Quartetos celestiais). Pertence à mesma tribo de Cerejo. Sem que ninguém o veja desliga as pilhas dos raios de Zeus, que de lágrimas volatizadas olha Cerejo com piedade lacedemónia)
JEOVÁ

Perdoado estás filho! Penso que os meus divinos colegas estarão também de acordo?
ALÁ, ZEUS E JÚPITER EM CORO
Embora a vingança almoce sempre connosco, achamos, por nós-deuses, que deveis serdes, em razão das nuvens, amnistiado.
(Neste momento, Demo Sazar sai debaixo das saias de Cerejo e aponta para os deuses não cristianizados um amuleto embrulhado contendo unhas das plantações do Tarrafal.)
DEMO SAZAR
Convertei-vos!
ZEUS, JÚPITER E ALÁ
(Com ar de desconfiados)
Não tens nada dentro do embrulho! Estás a fazer batota!
DEMO SAZAR
Mais uma palavra vossa e desembrulho-o!
(Entrega o embrulho a Jeová que ameaça os deuses intimados, enquanto Cerejo os enfia numa garrafa vazia de vinho do Dão.)
JEOVÁ
Estou maravilhado com o vosso sucesso!
CEREJO E DEMO SAZAR
Cumprimos com a nossa promessa. Agora é a vossa vez.
(Os três cúmplices dirigem-se às cavalariças siderais e montam no carro de Elias. Depois, rumam em direcção da Península Ibérica. Chegados lá, sobrevoam a cúpula de Santa Engrácia.)
DEMO SAZAR
(Tratando Jeová com intimidade)
Jeová, dá-me uma mão, senão nunca mais os encontro. Ultimamente vejo mal.
JEOVÁ
Estão ali no Campo pequeno.
CEREJO
Não está lá ninguém. Engano vosso.
JEOVÁ
A idade não perdoa. Também estou a ver mal.
CEREJO
E, se eu fosse lá baixo?
DEMO SAZAR
Sempre era melhor. Senão nunca mais saímos daqui.
(Cerejo agarra-se às barbas de Jeová e desce devagar até ao cimo das casas e saltando de telhado em telhado chega ao Paço Episcopal. Depois de lá entrar, dirige-se à sua antiga poltrona.)
CEREJO
Que vejo eu?
(Na sala de recepções, avista um padre da segurança deixar entrar Mário Soares depois de o ter apalpado.)
MÁRIO SOARES
(Dirige-se a uma figura esguia vestida de preto e de cigarro no canto da boca.)
Eminência! A vossa benção, por favor?
EMINÊNCIA
(Com o sorriso de tempo de antena, o mesmo que usava quando no tempo do Estado Novo pregava o cristianismo na RTP. Dizem que se apaixonara por uma “pivot”.)
Ei-la!
MÁRIO SOARES
(De joelhos)
Ah, que gostoso Eminência! Como Deus é grande!
EMINÊNCIA
Como estou satisfeito com a vossa entrada para o redil.
MÁRIO SOARES
O outro é que peca. Pavoneia-se amancebado (refere-se ao católico Sá Carneiro, primeiro-ministro de Portugal quando recebe acompanhado pela amante Snu, reis e chefes de Estado em cerimónias oficiais) pelas instituições sagradas do Estado Democrático e de Direito. Um verdadeiro pecado! (Cruza os dedos da mão esquerda colocada atrás das costas.)
EMINÊNCIA
(De mãos postas)
Sereis recompensado por essa nova mente que vos enlaça.
MÁRIO SOARES
Eminência!!!
EMINÊNCIA
No voto Amen, nosso também!
CEREJO
(Pensando que grita)
Sazar! Sazar! Por que não cumpriste as escrituras?
(No reino dos quatro Quartetos, aproveitando a ausência de Jeová, o Marquês de Pombal está de saca-rolhas na mão...)
FIM
(Editado em Ponta Delgada em 1983)

Sunday, June 25, 2006

 

Amanhã-27 de Junho-A CONTINUAÇÃO DE "NO REINO DOS APEDEUTAS" II, III e IV ENCONTRAM-SE NA MESMA COLUNA

Amanhã, dia 27 de Junho, conclusão. Quinta e última parte também incluída na mesma coluna inicial.
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OS ARTIGOS DE OPINIÃO DESTE BLOGUE PASSARAM PARA:

OS ARTIGOS DE OPINIÃO DESTE BLOGUE PASSARAM PARA:
WWW.AZORPRESS.BLOGSPOT.COM
E
WWW.AZORESPUBLICUM.BLOGSPOT.COM

Saturday, June 24, 2006

 

NO REINO DOS APEDEUTAS - PARTES II, III IV

I
(Nau que demandou a Índia reconstruída e assente num enorme carro puxado por cavalos da Guarda Nacional. Uma centena de populares arrasta-se atrás cercada por um milhar de polícias. O itinerário da caravana está programado com paragens. Esta dirige-se da Rua da Emenda para a Rua dos Clérigos. dentro dos camarotes da nau, várias personagens da cena política portuguesa esticam as cabeças pelas vigias e procuram equilibrar-se quando o carro estremece ao passar pelos buracos e pelas valas da via.)
SALAZAR
(Cumprindo o programa das paragens, Salazar enfia a cabeça através do camarote a fim de discursar. A vigia encontra-se tapada por uma redoma de vidro (pertença de dona Maria, sua criada e suposta companheira) que apresenta alguns furos.)
Prometo-vos a recuperação económica em apenas três meses; o fim do obscurantismo e da anarquia. Auguro uma nova era dourada para todos os portugueses. Sei muito bem o que quero e para onde vou.
MULTIDÃO
(Acossada pela polícia para que aplauda)
Quem Vive? Salazar!
Quem manda? Salazar!
(Salazar recolhe a cabeça e fala para dentro do camarote com um frade das Áfricas, dos Arquipélagos e das Índias.)
SALAZAR
Frade Cerejeira, diga-me quantas paragens ainda faltam? É que já estou farto de repetir este discurso!
FRADE CEREJEIRA
(Este frade foi feito cardeal de muito boa fama. Sorria sempre em público, até mesmo quando confirmava milagres.)
(Levantando a batina, procura o protocolo)
Apenas três Excelência!
SALAZAR
Estou muito cansado. Na próxima paragem, só meto a cabeça e não faço mais nada.
FRADE CEREJEIRA
Excelência! A memória dos povos é estreita. Aos domingos, não haverá problema nenhum. Reavivar-lhes-ei a memória se me recomendares ao Papa. É preciso agir sempre.
SALAZAR
Podeis contar comigo. O Papa concordará e até abençoará a ideia.
(O cortejo pára novamente. Salazar volta a enfiar a cabeça para o povo.)
SALAZAR
(Obedecendo ao frade, mas querendo ser original, acrescenta elementos novos ao discurso.)
Serão criadas escolas para o povo.
FRADE CEREJEIRA
(Puxa Salazar que se desequilibra e cai nos braços de Silva Pais.)
Excelência! Convenhamos a imprudência. Sabei que a burguesia está com os olhos postos em si. Tomai cuidado!
SALAZAR
(Metendo novamente a cabeça na vigia)
Nestas escolas que obedecerão a um plano, os professores colocarão um crucifixo entre as fotografias dos chefes da nação. O padre Cruz (mais tarde canonizado) irá de escola em escola indicar o horário das rezas e ensinará aos mestres o tipo de orações a ser ministrado. (Retira a cabeça)
(Numa outra vigia da nau, Silva Pais faz um sinal para a polícia e esta de imediato carrega na multidão.)
MULTIDÃO
(Aflita)
Que devemos dizer agora?
FRADE CEREJEIRA
(Percebendo a falta cometida no protocolo, enfia a cabeça na vigia e grita para o povo.)
Dizei oremos!
MULTIDÃO
Rezemos, oremos a mais não poder ser. Cada qual com o seu terço vai fazer as delícias de um Portugal novo.
SALAZAR
(Ouvindo as últimas palavras, puxa o frade pelas saias e grita.)
Viva o Estado Novo! (Mais tarde canonizado também.)
MULTIDÃO
Oremos o Estado Novo!
(No momento em que a multidão, já sem ser acossada, dá vivas, infiltra-se nela um homem com uma criança ao colo vindos a correr da Rua da Emenda. Era o Dr. João Soares, ex-ministro da Primeira República.)
CRIANÇA
(Que tem as fraldas molhadas)
Ué! Uééé!
FRADE
(Conseguindo meter a cabeça na vigia de Salazar)
Eu te baptizo de Maria e que nunca te falte o de comer!
PAI DA CRIANÇA
Ele é macho, sua besta!
FRADE
Herege! Duvidas da palavra de Deus?
PAI DA CRIANÇA
(Aproxima o falo da criança à redoma.)
Olha bem como é macho!
(Ambos os confrades de imediato recuam as cabeças espavoridos (nos seminários não se podia olhar o sexo. Dizem até que houve um Papa fêmea. Salazar tinha sido seminarista) com a safadeza do pai da criança. O frade, recuperando o sangue frio, volta a meter a cabeça na vigia.)
FRADE
Excomungado o pai e o filho, em nome do pai, do filho e da pomba também!
SALAZAR
(Falando para Silva Pais)
Não os deixes sem fronteiras!
SILVA PAIS
Às ordens professor! Não seria bom acatarmos as Sagradas Escrituras?
SALAZAR
Estão ultrapassadas. Nada de degolações. Para a ilha de São Tomé é já o suficiente.
FRADE
Pode custar-te caro excelência não tomares as Escrituras à letra. Uma vez excomungados e decapitados isso não seria considerado senão um acto-de-fé. O problema é vosso. Paciência!
(Silva Pais detém a criança e o pai, e leva-os à presença do Estado e da Igreja.)
SILVA PAIS
Ei-los aqui!
(A criança que se encontra nua da cintura para baixo, aproxima-se de Salazar e faz-lhe chichi nas calças.)
PAI DA CRIANÇA
Nesse e no outro! O das saias. Divide bem!
SALAZAR
(Batendo na criança)
Maldito bochechas!
(Continuação do dia 24-sábado)
MARCELO CAETANO
Olha o Marinho! Vieste trazer algum ramo de flores ao senhor ministro?
SALAZAR
Conheces este safado? Irá para São Tomé como penitência do crime que cometeu.
MARCELO CAETANO
É meu aluno. Se fez algum mal, decerto, não voltará a prevaricar. Ele respeita-me.
SALAZAR
(Mostrando as calças mijadas)
Não tem salvação possível! O crime é contra a dignidade e segurança do Estado Novo.
MARCELO CAETANO
Compreendo, é crime abrangido pela Administração Colonial. Não tem remissão. É tão grave como pisar a bandeira. O que é preciso é unir a nação num todo.
SALAZAR
Faça-se a União Nacional! Para além da unidade que nada seja unido.
(A criança e o pai saem algemados sob prisão acompanhados por Silva Pais. Salazar, Caetano e o Frade ficam a sós no camarote. Caetano chama a atenção par o facto de ir ler uma mensagem secreta.)
MARCELO CAETANO
(Lendo a mensagem)
"Criança cheia de cabelos esbranquiçados, que não acredita que Deus fale aos homens, está a encher a cabeça aos alentejanos dizendo que as terras devem pertencer aos camponeses e que os operários devem todos aprender a ler. Parece um doutor da outra lei."
SALAZAR
Tenho de fazer um discurso sobre o "Risco" de haver crianças precoces. Diz ao Silva Pais que entre em contacto com ele através dos processos tradicionais.
MARCELO CAETANO
Para as crianças deste género, devíamos criar uma creche especial por causa da opinião pública internacional.
SALAZAR E O FRADE EM CORO
Faça-se a tal creche em Peniche. Quanto à última questão, crie-se a censura ambulante para os meios de comunicação. Assim, evita-se que qualquer coisa se saiba lá fora.
MARCELO CAETANO
Corre-se o risco de ficarmos isolados e sós no contexto internacional.
SALAZAR
Mas orgulhosamente!
MARCELO CAETANO
É necessário que prestemos mais atenção à nossa mocidade. As crianças de hoje estão a perverterem-se; é só olharmos para a maneira como mal usam a gravata e como fumam. As que não têm vícios estão contra o regime que tanto trabalho deu a confeccionar.
SALAZAR
Que seja criada a Mocidade Portuguesa!
FRADE
A JEC e a JOC para os transviados.
(Arrombam a porta: é o comandante Cabeçadas que fala em voz muito alta.)
COMANDANTE CABEÇADAS
Senhor meu ministro, que faço do povo... que aguarda lá fora?
SALAZAR
Tinha-me esquecido senhor comandante. Pode mandá-lo embora. E como prémio da sua abnegação vou enviar-lhe um decreto fundando as Casas do Povo.
FRADE
Deus nos valha!
COMANDANTE CABEÇADAS
(Fala para Salazar)
Vou comunicar-lhe a Boa Nova.
(Cabeçadas sai e entra Vicente de Freitas de mão dada com o grumete Américo)
VICENTE DE FREITAS
(Para Salazar)
Está lá fora um conselheiro ilhéu que acaba de entrar na nau e lhe deseja prosar. Este aqui, dá bons sinais de ser obediente. (Aponta para Américo futuro Presidente-almirante)
MARCELO CAETANO
(Divertido, dirige-se ao grumete)
Leva a rrastadeira do senhor professor e despeja-a!
GRUMETE AMÉRICO
(Rindo da testa para cima)
Muito contente obedecerei.
(Américo com a arrastadeira na mão tropeça nas saias do frade e suja Marcelo com o conteúdo do criador do Estado Novo.)
SALAZAR
No poupar é que está o ganho.
MARCELO CAETANO
Este cheiro acompanhar-me-á até à morte!
FRADE
Aproveite Abril, o das águas mil.
VICENTE DE FREITAS
Que faço do conselheiro, senhor professor?
SALAZAR
Mande-o entrar, senhor primeiro-ministro (Salazar na altura era apenas o responsável pelas Finanças).
(Saem Vicente de Freitas, Américo e Marcelo. Este último dirige-se ao chuveiro. O conselheiro bate à porta e mandam-no entar.)
CONSELHEIRO
(Tentando beijar a mão do frade que a esconde debaixo das saias.)
FRADE
(De costas para o conselheiro)
Os recasados ficam sem benção.
(O conselheiro já habituado ao ostracismo da Igreja por ter casado segnda vez apenas pelo civil, finge que não ouve e dirige-se a Salazar a quem cumprimenta familiarmente.)
CONSELHEIRO
Professor, meu caro amigo. Represento as lamúrias dos insulanos. Perderam o ágio da moeda fraca e querem contrapartidas. Um movimento organizado levanta-se há anos reclamando mais amor cristão.
FRADE
(Metendo-se na conversa)
De protesto? Como se atrevem? Têm a liberdade religiosa que tanto desejavam. A graça do Senhor tem-nos poupado aos trabalhos porque passámos. Estão livres destes tumultos. Hão-de receber indultos de compensação e bulas para a digestão. E mais não!
CONSELHEIRO
(Voltando o rabo para o frade)
Saiba professor que estão longe de mais para poderem perder o ágio.
SALAZAR
Isso sei eu! Ainda acabam por querer custos de longura. (Volta-se para o frade)
Como os calarei?
FRADE
Adjazendo-os, senhor ministro.
SALAZAR
Isso mesmo. Tornando-os adjacentes!
CONSELHEIRO
Eu sabia que o professor encontraria a solução.
SALAZAR
De hoje em diante a Igreja e o Estado Novo completar-se-ão.
FRADE
O acordo entre as partes fortalecerá a nossa pátria. E para terminar este dia em glória do Senhor, que ninguém mais se possa recasar.
SALAZAR
Ó eminente e espectante prelado. Parti para a Cidade Eterna e levai o acordo das partes.
FRADE
Trarei a Concordata do nosso entendimento.
CONSELHEIRO
(Falando baixo para Caetano que entretanto voltara do chuveiro sem se ter conseguido lavar. Vestira por cima do mau cheiro a farda de comissário da Mocidade Portuguesa)
Será que saem capados dos seminários?
MARCELO
(Para o frade)
Reverendíssimo! Quero confessar-me!
CONSELHEIRO
Bufo!
SALAZAR
Ah! Crie-se a PIDE.
FRADE
Mais confessionários para a Igreja!
(Saem Marcelo e o Conselheiro)
FRADE E SALAZAR
(Abraçados e em coro)
Desnudos de bens materiais governaremos os apedeutas deste Reino do Senhor!
(Duração longa do abraço...)
(Continua amanhã dia 26 de Junho)
(Segunda-feira-26 de Junho)
V
NO REINO DOS APEDEUTOS
(Continuação)
II
ATÉ QUE...
(De madrugada, na Estação de Santa Apolónia, três homens conspiram encostados a uma carruagem.)
SPÍNOLA
Recebi a mensagem. Concordo. Viva o futuro de Portugal!
OTELO
Do Estado Novo ao Novo Estado não posso deixar prolongar a resposta a essa enorme provocação à farda.
Eanes
E não só! Então, e as promoções?
OTELO
(Mostra um mapa de Portugal do Automóvel Clube de Portugal)
Nós seguimos por esta via, e daqui vamos até à Pontinha. (Aponta com o polegar a Ponte Salazar)
SPÍNOLA
Óptimo!
EANES
E se fôssemos à Junqueira?
OTELO
Também pode ser!
SPÍNOLA
Para mim Cascais!
OTELO
No “João Padeiro” seria o ideal. O marisco lá é de grande qualidade.
EANES
(Para Otelo)
Tenho aqui algumas granadas. Dá-as ao Ramos para fazer a segurança ao nosso general.
OTELO
Um pelotão de Caçadores 5 irá levá-las.
SPÍNOLA
(Deixando cair o monóculo)
Eu tenho a minha espada comigo para o que der e vier!
OTELO
Trata-se de uma estratégia?
EANES
(Com a carranca predilecta)
O Paulo de Carvalho não canta?
SPÍNOLA
(Para Eanes)
Seria bom que você fosse tomar conta da RTP já que foi o responsável pela Radiodifusão de Bissau.
EANES
(Perfila-se, esquecendo que não está fardado)
Às vossas ordens, meu general!
SPÍNOLA
(Empunhando a espada)
Adeus, até à madrugada de amanhã!
(Depois da retirada de Spínola, os dois dirigem-se a um reservado higiénico, trancando-se por dentro para continuarem a conspirar.)
EANES
Eu acho estes planos muito bons. Só que não contaste com a oposição do regime que vamos derrubar.
OTELO
Oposição? Ó menino, o próprio Marcelo, o mais perigoso de todos, concordou em ir para o Convento do Carmo aguardar pelo nosso general para lhe entregar já não me lembro o quê...
EANES
E a Guarda Republicana?
OTELO
Fingirá que é destacada para uma operação stop, e só mandará parar civis.
EANES
E a Legião?
OTELO
Roubei-lhe as armas na última instrução.
EANES
E a PIDE?
OTELO
(Engasga-se, mas consegue responder.)
Esse é um problema que deixamos para o povo resolver.
EANES
Boa ideia! Mas acontece que nos esquecemos do mais importante!
OTELO
As refeições?
EANES
Não! Os políticos da oposição!
OTELO
Que diabo é isso?
EANES
Agora, não tenho tempo para explicações. Mais tarde hás-de compreender. Só hoje é que o Melo Antunes me ensinou o que isso era. É muito complicado. Mas temo que não será pêra fácil.
(Separam-se...)
III
(Em Paris, o dr. Mário Soares, que se encontra a assistir a um espectáculo num Café Concerto, é chamado de urgência à porta de entrada, por um português exilado.)
EXILADO
(Tenta abraçar Soares)
Camarada!
SOARES
(Revirando os bolsos)
Os últimos francos deixei-os de gorgeta ao criado.
EXILADO
(Muito excitado)
Camarada! O Marcelo e o Tomáz foram para a ilha da Madeira e estão presos num hotel de cinco estrelas! O povo está com o MFA! O Spínola é o chefe! O estratega que era da Legião já deu uma entrevista na televisão a dizer que gostava muito de ser actor. A PIDE está a queimar papeis à janela. O Álvaro Cunhal foi chamado ao “chaimite” da Cova da Onça! O Zeca Afonso ensina os presos de Caxias a cantar a morena que estava na esquina da vila. Os oportunistas...
SOARES
Calma! Calma camarada. Troca isso por miúdos.
EXILADO
A revolução está na rua! O regime caíu!
SOARES
Vou acabar o meu uísque e ver o espectáculo até ao fim. Amanhã, vamos ver o que se pode fazer. Procura-me ao meio-dia.
IV
(Na varanda do frontespício da Estação de Santa Apolónia, Mário Soares fala a uma ruidosa multidão que o aplaude e que impede que o ouçam.)
SOARES
Vamos construir um Portugal novo. Justiça para os povos subjugados e colonizados pelo regime da opressão, da padralhada, dos bufos, dos legionários, dos fascistas, dos exploradores, do patronato, dos impostos à classe trabalhadora, dos inimigos de Marx, dos caciques abençoados pela Igreja, dos reaccionários, dos contra-revolucionários. Prometo-vos a recuperação económica em menos de três meses, o fim do obscurantismo e a disciplina como alternativa à anarquia. Auguro uma nova era de ouro para todos os portugueses. Sei o que quero, mas não sei para onde vou. Quanto aos portugueses de África, devo dizer que nós socialistas estaremos atentos a todos os actos de injustiça. Serão salvaguardados os haveres de todos os portugueses de África sem excepção. As reformas começarão mal tomemos o poder.
(O senhor Boina Basca e outro de bigode à João Bafo de Onça puxam Soares.)
BOINA (Raúl Rego) e BAFO (Tito de Morais) EM CORO
Convém ter cuidado com a linguagem. Este país ainda ontem à tarde era fidelíssimo à Santa Sé.
SOARES
(Vou reformular)
(Quando Soares volta à varanda, a multidão tinha-se sumido. Partira atrás de um senhor de cabelos brancos. Soares errou durante quarenta dias e quarenta noites pelas avenidas de Lisboa, até que encontrou parte da enorme multidão na Fonte Luminosa que tinha fugido do seu discurso. A outra parte da multidão, a contra-multidão, continuava a perseguir o da alva cabeleira.)
SOARES
(Às cavalitas no Jaime Gama)
Portugal é Ocidente! Portugal é Europa! Portugal é CEE! Acabada a colonização de África, começa o caminho para a Europa.
MULTIDÃO
Europa! Europa! A Sibéria fica fria.
(Os gritos da multidão foram ouvidos ao longe pela contra-multidão que se aproxima.)
CONTRA-MULTIDÃO
(Cantando e avançando ao encontro da multidão)
Reaccionários! Contra-revolucionários! Reaccionários! Reaccionários! Reaccionários!
SOARES
(Que continua encavalitado em Jaime Gama)
Zebróides! Zebróides! Xó! Xó!
MULTIDÃO
Xetá! Xó! Xó!
Xó! Xó! Xeta!
(Amanhã, quinto e último capítulo)

Friday, June 23, 2006

 

PARA SÁBADO: NO REINO DOS APEDEUTAS

Escrita em 1984

COMÉDIA?

ALGUMAS PERSONAGENS:
SALAZAR
CEREJEIRA
SPÍNOLA
EANES
MÁRIO SOARES
ALÁ
JÚPITER
JEOVÁ e outros... Posted by Picasa

 

CONFINS DO HÍFEN - CONCLUSÃO


Com vários interlocutores em acção simultânea mais longe se fica de uma compreensão rigorosa. Imaginemos um emissor a elaborar um discurso sobre a Lua e sobre raios gama. Um receptor analfabeto no assunto, isto é, um indivíduo que possua registos diminuídos sobre a questão compreenderá pouco ou nada sobre aquilo de que se trata. Para que compreenda precisa completar os registos ao nível do primeiro. Sem equivalência de RBIP os discursos serão distintos. A compreensão também será distinta. Se utilizarmos a metalinguagem como auxiliar no acto de entender é porque, naturalmente, fica demonstrada a diferença de registos. O conhecimento adquirido e depositado num determinado registo produz um discurso próprio e distinto . Suponhamos dois homens saudáveis. Um possuidor de pernas longas e o outro de pernas curtas. Se os pusermos a correr lado a lado verificaremos que um se distancia do outro. Isto é, o homem de perna longa afasta-se mais depressa do ponto inicial da partida. O homem de perna curta não tem a liberdade de correr como o homem de perna longa. (Estamos a pensar de condições idênticas...) Cada corredor é a perna que possui. Um corredor salta mais do que o outro. O que não consegue saltar que liberdade tem de saltar? Nenhuma? Alguma? Que se diz do salto dele? Que não salta? Que salta pouco? Quando se treina o cérebro para resolver certas questões, que resultados se obtém quando comparados com outros não treinados? “Fabricam-se” cérebros mais bem preparados do que outros. Haverá diferenças na forma de pensar entre os que foram entre os que foram treinados e os que não foram? O acto de pensar é-lhes comum, mas não o que os pensamentos significam. Estes são distintos, uma vez que foram treinados para actuarem de forma distinta. Para um mesmo texto e perante dois interlocutores dá para perguntar: o que é que leste que eu não li? Será que as relações surgem já possuidoras dos princípios
racionais ou moldam-se a estes princípios incrustados nos mecanismos cerebrais? Como coloco as imagens por ordem e como é possível relacioná-las? As imagens como impressões não se apresentam ordenadas. A ordem surge depois. A ordenação das impressões pertence a um outro momento. Relacioná-las é o momento que se segue . Só se pode relacionar o que é dado como anterior. Seria ingénuo pensar-se o contrário. Sabe-se que tanto as impressões como as relações “passeiam-se” nos canais cerebrais. Posteriormente, juntam-se para por efeito fazerem sentido. Vamos relacionar. O quê, pergunta-se? Se no determinado momento em que recebemos impressões e nos preparamos para as relacionar a nossa atenção for desviada para outra questão, a acção de relacionar fica para depois. E fica para depois por ordem de outros interesses. Isto quer dizer que tanto as impressões quanto o seu relacionamento podem ser “manipuladas” . Não são auto-suficientes: elas circulam “empurradas” nos canais cerebrais. Será que o pensamento pode ser empurrado, manipulado, suspenso? Poderemos manipulá-lo, alterando os focos de interesse? A prática confirma-o. Quando se desfocaliza um assunto que se está a tratar, apresenta-se-nos um cérebro actuante por si próprio ou ele obedece a outrem? O cérebro interage. É cúmplice do que se passa! As impressões não têm dono. Porém, quando surgem por solicitação, o cérebro actua de imediato. É auto-sugestionado? Parece ser dono da sua própria actuação! Em princípio, estando sempre atento ou em vias disso, ele é a par com o sujeito uma peça importantíssima. É tão importante que a corrente de consciência é uma coisa e o sujeito que a detecta, é outra. Eu temo o cérebro! Porquê? Porque ele pode-me pregar partidas. Ele interfere comigo. Até que ponto, não me arrasta ele para a sua decadência? Quantas vezes não é o cérebro o senhor da situação? Pelo menos, a nível de expressão oral, exemplos não faltam. O cérebro organiza a expressão oral. A quem cabe tal organização a não ser ao cérebro? Se fosse só o sujeito a organizar o pensamento, não seria só ele o responsável pelos desvios deste? Que tipo de sujeito é este que se deixa desvirtuar voluntariamente? Umas vezes temos o cérebro a desregrar (por defeito), outras o sujeito. O sujeito é mais fraco do que o cérebro. E porquê? Porque nem sempre o cérebro lhe obedece e porque outras vezes é o cérebro a conduzir o comportamento supostamente independente do sujeito. Quando o sujeito se “distrai”, ele transforma-o em bonifrate. Quando é que o pensamento é apenas fruto do cérebro e quando é que ele é apenas a vontade do sujeito? O pensamento do homem é filtrado pelo cérebro! Será o cérebro o juiz ou deixa passar o pensamento tal qual o sujeito o elabora? Nunca o pensamento é pensamento sem a ajuda do cérebro. Por essa razão se ele ao elaborar o pensamento pratica censura ou desvios nunca o poderemos saber. O homem pode afirmar-se livre e até ser capaz de não aceitar qualquer tipo de manipulação. Muito bem! Então, veja se é capaz de o fazer do lado de fora do cérebro? Veja se consegue torná-lo puro? Não pode! Pensamento puro só pode ser entendido por outro pensamento puro e sem intermediários. Utilizado pelo cérebro o pensamento deixaria se ser puro porque o cérebro não é puro. O pensamento é recheado de acidentes a partir do momento em que é produzido por uma máquina biológica que o molda e o transforma. As impressões(RBIP) referentes a um mesmo objecto podem variar de cérebro para cérebro. São instáveis porque se enriquecem ou deterioram-se consoante adquirem mais conhecimentos ou pelo desgaste do cérebro. Penso que depois disso só poderemos falar em pensamento cerebral. Partindo deste pressuposto, onde colocar a liberdade da linguagem? Quanto dessa linguagem pode ser livre se ela é moldada pelo cérebro? Poderá a linguagem humana fugir a este esquema? Só um homem criado por outro homem poderá ser livre, porque estando programado para a liberdade, a sua vida apresenta esta opção sempre. Ao passo que o homem em geral que se afirma livre, tem de justificar porque é livre. Encontra-se, por vezes, em contradição. Não é livre! É suspeito de ser livre. O autómato, esse sim, é livre e nunca deixará de o ser. Só tem “consciência” para a liberdade que lhe é imposta como modelo. Que tipo de pensamento só se pensa acompanhado? Que interessa: a causa ou a consequência do pensamento? O princípio? Se o pensamento tem uma causa, por que razão se distorce? A distorção é a consequência. A causa não pode ser única! Tem de haver causa dupla! Causa dupla? A liberdade é uma causa dupla? Em que liberdade me situo? E se tudo provém de uma causa dupla? Então, o meu discurso é um duplo. É uma distorção! Será o meu cérebro um duplo? Não me faz ele pensar mais do que uma maneira tendo em conta o mesmo objecto de análise? E, para com as mesmas questões, sei por experiência própria que ele sugere mais do que uma perspectiva. Serei eu capaz de o corrigir? Ele faz dos dados que recebe o que muito bem entende! Quando sou induzido no erro pelas interpretações que ele faz, como posso ter a certeza que sou eu mesmo quem o detecta? Não é ele que possui os instrumentos de distinção para o fazer? Será que falo pela máquina? Será que é ela que me interpreta para fora de mim? Estar fora de mim é estar dentro da máquina? Quando poderei ser sem cérebro?
FIM
manuel melo bento

Thursday, June 22, 2006

 

CONFINS DO HÍFEN (Continuaçao do dia 22 de JUnho)

(Hoje, entrei nos copos. Talvez só transcreva uma pequena parte do que tencionava expor. Ainda não perdi o tino, mas o apelo da noite está a pôr-me num frenesi. Com sessenta e cinco anos, o que é que hei-de fazer à vida? Nada! É ela que se encontra comigo, na altura em que menos espero.)
III
O que é que coloca as ideias numa corrente organizada e com sentido lógico? Será que as ideias quando tomam forma já vêm imbuídas do processo lógico ou moldam-se às leis da lógica num momento posterior? Moldar-se às leis da lógica posteriormente significa que as ideias tomam corpo como matéria simbólica na viagem que fazem através dos neurónios e seus prolongamentos. As ideias moldadas em palavras e posteriormente em frases são produtos do cérebro.. O cérebro organiza a informação e transforma as impressões dos sentidos em impressões práticas. Práticas por que podem ser utilizadas posteriormente. Como organiza o cérebro a sequência das impressões práticas? Qualquer impressão prática indica remota ou proximamente a preparação para o acto de sobrevivência. Uma má impressão prática implica um estado de alerta no equilíbrio da sobrevivência. As impressões práticas são sempre úteis quer pela positiva quer pela negativa. São elementos de informação e nela residem as directrizes dos comportamentos futuros. Uma impressão prática é constituída por todo o conhecimento organizado à sua volta. Cada impressão prática é um registo biográfico, mas sempre em crescendo. Num confronto de discursos, cada interlocutor utiliza as impressões práticas para se fazer entender. Se um dos interlocutores é proprietário de um registo biográfico de impressões práticas(RBIP) mais rico do que outro, é muito natural que a compreensão entre eles sofra ruídos na comunicação. Entender-se-ão, mas nunca a cem por cento. Para que tal aconteça teriam de possuir RBIP iguais. Que tipo de compreensão e entendimento terão interlocutores com RBIP diferentes?
(Fico, hoje, por aqui. Viva a folia que se seguirá...
manuel melo bento

 

CONFINS DO HÍFEN (Continuaçao do dia 22 de JUnho)

(Hoje, entrei nos copos. Talvez só transcreva uma pequena parte do que tencionava expor. Ainda não perdi o tino, mas o apelo da noite está a pôr-me num frenesi. Com sessenta e cinco anos, o que é que hei-de fazer à vida? Nada! É ela que se encontra comigo, na altura em que menos espero.)
III
O que é que coloca as ideias numa corrente organizada e com sentido lógico? Será que as ideias quando tomam forma já vêm imbuídas do processo lógico ou moldam-se às leis da lógica num momento posterior? Moldar-se às leis da lógica posteriormente significa que as ideias tomam corpo como matéria simbólica na viagem que fazem através dos neurónios e seus prolongamentos. As ideias moldadas em palavras e posteriormente em frases são produtos do cérebro.. O cérebro organiza a informação e transforma as impressões dos sentidos em impressões práticas. Práticas por que podem ser utilizadas posteriormente. Como organiza o cérebro a sequência das impressões práticas? Qualquer impressão prática indica remota ou proximamente a preparação para o acto de sobrevivência. Uma má impressão prática implica um estado de alerta no equilíbrio da sobrevivência. As impressões práticas

Wednesday, June 21, 2006

 

CONFINS DO HÍFEN (Continuação do dia 20)


II PARTE

Felizmente que os conhecimentos medievais que intelectualizaram impressões dos sentidos e que permaneceram como base a raciocínios posteriores estão pouco a pouco a encontrar dificuldade para se imporem como fiáveis. As dificuldades debatem-se com as elites e não com a mole humana. A mole humana, mercê de os seus corpos serem constituídos na base de modelos de equilíbrio, encontram no imaginário um suporte para as necessidades criadas pelo cérebro. Este é constituído por áreas muito complexas que a pouco e pouco se referenciam especificamente. Uma comunidade humana equilibra-se e molda-se a objectivos de sobrevivência com evidentes comportamentos de sujeição. As comunidades exigem ser comandadas e exigem-se obedientes também. Elas pensam em uníssono. O caos desorienta-as. É por isso que os cérebros (em colectivo) se adaptam (ao comando e à obediencia) para não serem dissolvidos, o que é contrário à sua natureza. Certas áreas do cérebros adaptam-se às circunstâncias automaticamente. O cérebro é um adaptador por excelência. O Contacto com o exterior é realizado nestes moldes. Quem, se não ele, dirige os sentidos para que a estadia do corpo (temporária) alcance os objectivos programados: a sobrevivência qualitativa? A religião faz parte da sobrevivência qualitativa. Ela traz um bem estar aos corpos e seus mecanismos. Apesar de a religião apresentar generalizações mitológicas não deixa de ser útil. Essas generalizações são auto-reguladoras. Satisfazem! A liberdade não é um conceito universal. O homem não sabe lidar com ela. Não se constitui em liberdade. A liberdade é um discurso de elites. Nada no homem é livre. Nem o seu cérebro nem o seu corpo são para a liberdade. A vida ou alma, como se queira chamar, apresenta uma acção: fazer crescer o corpo que a acolhe. Esse corpo tem os seus objectivos. A vida não tem objectivos para além do que se lhe aponta: permanecer condicionalmente. Ela salta do corpo quando este se esgota e corrompe. A vida não tem o objectivo absoluto da permanência. O corpo sim. É vê-lo regenerar-se até mais não poder, numa luta terrível para ser sempre corpo. A vida activa-o. O corpo é o seu maestro. A vida é o bom parasita que o corpo alberga para em contrapartida poder actuar. Quem actua é o corpo e os seus mecanismos. Quem o dirige? O próprio corpo! O corpo é que pensa, a vida não o faz. O cérebro cria as condições necessárias para que a vida nele permaneça o maior período de tempo possível. Isto é o co-sentido da vida. A vida é-o no corpo. Todos os seres com corpo têm um sentido. Um peixe possui um sentido de via aquático. Terá a vida um sentido aquático? Não! O corpo do peixe sim. O que se distingue nos peixes e nos homens? A vida? O corpo? Só pode ser o corpo! Seria anedótico dizer-se vidas distintas sem corpos e cérebros distintos. Repare-se que mesmo no imaginário mitológico os deuses e/ou o deus-homem não dispensam o corpo. E mesmo aqueles que se dizem imateriais ou são “acusados” de imaterialidade procedem como dependentes dos corpos. Os deuses consertam corpos e concertam almas. Os corpos receitam mezinhas comportamentais. Quanto às almas? Amar o próximo como a si mesmo? - do Universismo chinês, copiado quinhentos anos depois pelo judeu que deu origem ao judaísmo-cristão. Como se pode amar o próximo sem comportamento corporal? Como se pode amar Deus sem obrigar o corpo a ceder às suas exigências? O corpo fornece muitos mais dados objectivos do que a vida. Quem dá a informação quando o corpo fica sem vida? Quem passa frio, fome, esgotamento, etc? Quem tem sede de justiça ou de amor? Que justiça ou que amor não passa pela dimensão do corpo? Que é isso de justiça divina que não julgue os actos do corpo? Que é isso de cobiça que não esteja ligada aos ditames do corpo? Que é isso de crimes mentais que não digam respeito às diabruras do corpo? Eu posso desejar ser Deus porque ele tem tudo. Tudo o quê? Paz de espírito é quando o corpo está satisfeito. Satisfeito porque não mais está incomodado. Ter saudade de uma outra alma humana o que será? Se ela perder as suas características corporais nunca suscitará saudades! É como amar um Deus sem corpo. E quem diz corpo diz fala, pensamento, e outros atributos humanos que o corpo materializa. Um deus sem nada de compreensível será uma chatice de um enigma a todo o transe. Não estamos à altura de compreender a divindade que criámos ao sabor das intenções do no nosso corpo de apetências feito...
(Continua amanhã dia 22)

Tuesday, June 20, 2006

 

CONFINS DO HÍFEN - Continuação do dia 19 de Junho


DEDICO ESTE TEXTO A ANTERO CABRAL E À NOSSA SEMPRE BOA DISPOSIÇÃO
CONFINS DO HÍFEN
CONTINUAÇÂO do dia 20
M
É provável. Mas isso não me interessa para já. Analisemos um corpo com vida. Um corpo doente e sofredor que fará à vida desse corpo?
V
Sei lá! Talvez uma vida sofredora por tabela.
M
Que partes do corpo estão sujeitas à doença?
V
Julgo que todas.
M
Incluis o cérebro também?
V
Claro que sim!
M
Será que podemos dizer que a vida antes de “entrar” no corpo, já estaria doente?
V
Não me parece! O que é mais que provável é ser o corpo quem adoece. É como aquela semente que não cai em boa terra.
M
Um cérebro doente que fará à vida?
V
Um cérebro afectado produzirá desequilíbrios e comportamentos desajustados.
M
Os malucos são doentes?
V
Claro!
M
E os que cometem crimes?
V
Apresentam, também, comportamentos desajustados e pronunciados desequilíbrios. São também doentes.
M
Será que se pode mandar às urtigas o livre arbítrio?
V
Nunca! Isso diz respeito às coisas da alma e do espírito. O homem é presenteado por Deus para ser livre e responsável.
M
Lá estás tu a falar daquilo que não sabes o que é. Até agora falámos de duas coisas das quais podemos adquirir algum conhecimento. Sobre o corpo e a vida, embora esta não seja visível a olho nu.
V
Há mais coisas para além disso!
M
Vamos supor que eu acreditava na alma como tu a perspectivas. Uma alma não vive separada da vida nem do corpo. O que seria uma alma num corpo sem vida? Esta ideia tem dificuldade em enquadrar-se no nosso modelo de pensar. Pode-se pensar numa alma fora do corpo? Nada nos impede de o pensar. Retirar-se a vida à alma é estar a congeminar um conceito impróprio para ser consumido racionalmente. Uma alma sem vida é coisa esquisita. Uma alma para o ser tem de se comportar. Uma alma que não actua, o que é que podemos dizer dela? Para se responsabilizar uma alma (na tua perspectiva) ela tem de actuar. E só presta contas (na tua perspectiva) depois de proceder bem ou mal. As almas não podem ser culpadas ou inocentadas fora deste enquadramento. Como podem ser premiadas ou punidas se não se pronunciarem? Para o serem têm de encarnar. Que eu saiba encarnam no corpo que pode estar física e mentalmente doente; incontrolável, etc. Como se pode julgar uma boa alma que está impedida de ser boa só porque habita num corpo debilitado mentalmente o que lhe reduz a capacidade de distinguir o bem e o mal? Quem se atreve a julgá-la?
V
Deus existe para alguma coisa!
M
Deus existe como forma de discurso humano. Acreditar ou não em Deus é coisa que pertence à estrutura mental do homem. Ser crente ou ser ateu não é mais do que um estádio onde muitos se encontram. Por sinal, encontro-me num outro que se distingue desses dois porque ultrapassa essa invenção psicobiológica.
V
Explica-te melhor.
M
Não professo nem o teísmo nem o ateísmo, nem tão pouco o deísmo.
V
Quem julgas que és?
M
Nada tem interesse para o homem neste Universo. Acho que o melhor é não existir depois de ter existido. A existência conspurca a não-existência, isto se esta existir como tal. A existência é um tumor do nada.
V
Puf!
(Cont. amanhã dia 21

mmb

Monday, June 19, 2006

 

CONFINS DO HÍFEN - DIÁLOGO


CONFINS DO HÍFEN
VARETT
Qual é a tua última loucura?
MANDALA
Estava eu a olhar para uma semente e lembrei-me, de repente, de uma coisa giríssima.
V
De papoilas?
M
Uma semente que se transforma em raiz, caule, ramos, folhas, flores, e frutos.
V
Será isto uma aula de Botânica?
M
Ela (a semente) parece-me toda igual. Depois, parte dela, ao desenvolver-se, infiltra-se para o subsolo e outra sobe aos céus.
V
Milagre! Experimenta ver à lupa a semente e talvez consigas encontrar a parte que vai para cima. Que sairá daqui? É isso que dizes ser uma coisa giríssima?
M
A coisa giríssima é que eu saltei da semente para algo que gostaria que seguisses atentamente, isto se te for possível entender a linguagem popular a qual faço questão de usar sempre.
V
Porquê? Julgas-me incapaz de seguir o teu raciocínio?
M
Não é nada disso! É que às vezes tenho de reformular a minha exposição, senão tu perdes-te no enredado das ideias.
V
Evita isso, sendo claro.
M
Pergunto-te se todos os homens e todas as mulheres são iguais?
V
Piraste de todo?
M
Ouve-me, os homens e as mulheres são todos iguais! O que os distingue é precisamente o invólucro.
V
O espírito feminino não é igual ao espírito masculino. Um homem forte não é o mesmo que uma mulher forte. As sementes, já que as referiste, são iguais ou muito parecidas e, no entanto, depois de se desenvolverem deixam transparecer diferenças gritantes Se algumas crescem em terreno de pousio, serão naturalmente mais saudáveis quando comparadas com outras que foram semeadas em terreno arenoso.
M
Olha o exemplo das videiras. O terreno arenoso produz melhor vinho. Isto vem provar que o mesmo objecto (neste caso o da semente) reage de forma diferente a condições diferentes.
V
Repara que há sementes mortas e não passam disso mesmo.
M
A uma semente que não se desenvolve, falta-lhe o quê?
V
Vida!
M
Falemos das sementes das sementes que têm vida. Cada semente que se desenvolve, desenvolve a semente nela mesma ou a vida?
V
Não percebo!
M
Quando é que a semente se torna com vida? Será quando possui esta?
V
Claro, se não possui vida não se desenvolve.
M
A vida é uma coisa, a semente é outra. A vida quando não se introduz na semente poder-se-á considerar uma coisa à parte?
V
Neste caso, sim!
M
A vida é toda igual antes de se “introduzir” na semente ou achas que ela apresenta diferenças consoante os casos?
V
Não sei! Penso que deve ser igual. Porém, individualiza-se conforme os casos. Existe vida noutros seres. Neste caso, da semente, trata-se de uma parcela de vida.
M
Quando a planta cresce, a vida molda-se a ela. E modifica-se ao acompanhar a “personalização” da planta.
V
Se a vida se compromete com a planta, torna-se claro que ela seja vista como forma da planta. Neste caso, a vida não tem outra soluçao senão identificar-se com a planta. É que se se retirar a vida à planta, tanto uma como a outra deixam de ser o que eram.
M
Já “vimos” que a vida entra na semente (se isso não acontecesse a semente não se desenvolveria). A vida ao acompanhar o desenvolvimento da semente sujeita-se às características desta. Uma planta que sofra a acção de um vírus maléfico certamente que terá uma vida muito difícil: uma vida doentia e um comportamento equivalente. Não achas?
VAté aqui não acho difícil seguir o teu raciocínio. E depois?
M
Saltemos a nossa atenção para os seres humanos. Tens conhecimento de que há os que se desenvolvem no seio materno e que no acto de vir à luz nascem mortos?
V
Que novidade!
M
Têm vida?
V
Claro que não!
M
Acreditas na transmigração das almas?
V
Não!
M
A vida que é “colocada” nos seres humanos será toda igual?
V
A vida é um acto divino. Quando é “colocada” no ser humano já está distinguida.
M
Olha que há seres humanos que mudam de sexo durante a vida, que têm doenças de todo o tipo, inclusive do tipo mental que lhes modifica a personalidade, etc.
V
E depois?
M
A vida não é só por si garantia para o desenvolvimento do ser humano. O corpo e a vida são parceiros que não se podem separar.
V
Quando o corpo morre, a vida contínua.
(Continua amanhã, dia 20 de Junho) Posted by Picasa

Sunday, June 18, 2006

 

COMENTÁRIOS, ENTREVISTAS E OUTRAS CRONICIDADES EM www.azorpress.blogspot.com e www.azorespublicum.blogspot.com

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"PARA NÃO ESTAR SOZINHO ESTOU COMIGO PRÓPRIO": FRASE DE A. FERREIRA LEITE A QUEM DEDICO OS TEXTOS DE 17 e 18 DE JUNHO


ANTÓNIO FERREIRA LEITE
Pessoa a quem respeito e admiro, mas cujas ideias do além e do pro-além me irritam "solenemente".
Já a seguir: conclusão de "Diálogo em Baú"

Saturday, June 17, 2006

 

A PALAVRA DO SENHOR É O PRESERVATIVO DO PECADO - INCLUI A CONCLUSÃO DO TEXTO NESTA COLUNA


A PALAVRA DO SENHOR...
DIÁLOGOS EM BAÚ - ( JÁ CONTÉM A SEGUNDA PARTE)
I
- Qual é a relação entre um orgasmo e Deus?
-Não sei! E também não quero responder!
-Então, respondes ou faço-te uma prelecção sobre a o assunto?
-Puxa! Espera lá que eu já respondo. Eu acho que nenhuma!
-Diz-me cá uma coisa. Deus é um sentir gostoso ou nada que se lhe pareça?
-É um sentir gostoso que é diferente de fazer sexo.
- Fazer sexo é gostoso?
-É gostoso, mas como digo é diferente.
-O que é que é mais gostoso para ti: ter um orgasmo ou pensar no Senhor Deus?
-Já disse que cada um tem o seu plano!
-Esse plano que cada um possui pertence ao que atrai ou ao que rejeita?
-Ao que atrai!
-Pelo menos já descobrimos uma relação: ambos atraem, o que é contrário ao que de início afirmaste.
- É uma relação muito ténue.
-Diz-me cá uma coisa. Estar com Deus ou ver Deus o que será? Podes explicar?
-Eu nunca estive com Deus e também nunca o vi. Portanto, como queres que te explique?
-Mas já ouviste falar com quem Deus falou? Acreditas?
-Sim, acredito!
-Uma vez que acreditas, o que é que achas que eles sentem?
-Um prazer imenso! Só pode ser isso!
-Um prazer sexual?
-Disparate!
-Diz-me o que é um orgasmo?
-É um prazer.
-Será imenso?
-Claro!
-Parece-me que posso dizer que tanto Deus como o orgasmo dão um prazer imenso?
-Deus é muito mais do que isso!
-Que será, então?
-Deus é um prazer imenso, mas espiritual.
-E o orgasmo?
-O orgasmo é um imenso prazer, mas é pertença da área do sensível.
-Na área do sensível? Poder-se-á dizer visível? O esperma é um sinal visível?
-Claro, é um sinal visível!
-Esse sinal representa que alguém obteve prazer sensível imenso ou o esperma é em si mesmo prazer imenso?
-É um sinal que representa e acompanha o dito prazer. Não é em si mesmo o prazer.
-Simplificando. O sujeito obtém o remanescente. O sujeito é uma coisa e o remanescente é outra. O sujeito fica, portanto, à mercê do prazer. E o prazer nem sempre está presente, pelo menos no que diz respeito ao prazer sexual.
-O sujeito pode provocar o prazer ao passo que o prazer imenso de Deus nem sempre é possível provocá-lo.
-Como é, não está sempre presente?
-Sim, mas isso é diferente de ver Deus. Uma coisa é no campo do entendimento nós percebermos que ele está sempre presente, outra é ele dar-nos aquele prazer imenso de estarmos com ele sentindo-O.
-Diz-me o que é preciso para atingir o orgasmo?
-Fazer sexo nem que seja mentalmente.
-E o que é preciso para atingir Deus?
-Orar! Orar muito!
-Orar pertence à área do prazer ou do sacríficio?
-Sacrifício! Porém, às vezes, há quem se deleite com o sacrifício da oração.
-Entre fazer sexo e atingir o orgasmo, qual será deles melhor em termos de prazer?
-O orgasmo! Porém, há quNegritoem com treino tire muito prazer em fazer sexo até ao limite do orgasmo. É uma questão de educar para.
-Se nos educarmos na direcção de Deus, não será possível amá-lo e temê-lo?
-Sim, ensinam-nos isso.
-Quanto ao orgasmo será possível temê-lo?
-Acho que não. A não ser na área da patologia. Mas mesmo assim, quando o sujeito o obtém, isso é prazer. E interpretá-lo como um sacrifício é também uma questão de educar para.
-Daqui a pouco dirás que educar para é o conveniente para aceitarmos determinadas asserções como verdadeiras.
-Creio que educar para pode, em certa medida, tornar-se nisso.
II
- Na história da atracção dos sexos existe um momento de observação. Observação esta que às tantas se sujeita a ser confundida com a contemplaçao propriamente dita.
- E há muito boa gente que permanece por muito tempo na contemplação.
- Às vezes não passa disso. Por que será? Tens alguma ideia sobre o assunto?
- O objecto da contemplação passa ao plano do sagrado.
-Suponhamos que vias a mãe de Cristo despida. Dizem que ela era muito bonita – a estatuária mostra-o – Como reagias?
-Diacho!
- Não fui eu que dei corpo físico à mãe de Cristo. Logo, não blasfemo. O mesmo poderia dizer da Madre Teresa ou da tia do Buda. A Senhora, de certo, lavava as partes genitais. De outro modo ficaria infectada e infectaria o pobre carpinteiro. Lavadinha e nua, como a olharias?
- Não olharia!
- Não olharias o quê?
- A Mãe de Cristo nua!
- É isso! Pelo menos já admites que uma vez posta a questão da sua nudez tu nunca olharias o seu traseiro desnudado. É de respeitar! Uma coisa tão da natureza foi por ti relegada à sacralização doentia. Acontece a todos os que o sagrado cega.
- É uma coisa de respeito!
- A natureza é de respeitar?
- E por que não?
- A nudez dos corpos será uma coisa natural ou artificial?
- Lá está este! O que tu fazes é desrespeitar o sagrado.
- Longe disso! O que eu pretendo é descobrir o sagrado. E descobri-lo em quem se diz possuí-lo e compreendê-lo, como é o teu caso.
- Assim fui criado e educado. Assim permanecerei!
- Muito bem! O facto de guardares só para ti a forma do sagrado não será um acto egoísta?
- Como assim?
- A quem não entende o sagrado com facilidade como tu o vês, como será possível encontrá-lo?
- Nem a todos a inspiração divina toca!
- Permanecerei nas trevas?
-Se assim continuares.
- Indica-me o caminho!
- Crê!
- Para crer tenho de compreender. Não sou cretino! Voltemos ao início da questão que nos levou ao diálogo. A Mãe de Cristo sentiu prazer ao ser fecundada pelo Jeová?
- Claro que não! O prazer é coisa da natureza. O que aconteceu foi um fenómeno na área do sobrenatural. Percebes?
- Ela estava, então, destinada ao sofrimento e não ao prazer.
-Foi a escolha de Deus.
- Está portanto, na mão de Deus permitir o orgasmo e o consequente prazer que este arrasta. Por esta ordem de ideias Deus e o orgasmo são coisas diferentes. Deus oferece o prazer do orgasmo como presente já que é uma coisa muito saborosa.
-E não podemos confundi-los uma vez que os distinguiste como sendo um o criador e o outro a coisa criada.
- Retirar-te a possibilidade de teres orgasmo é para ti uma coisa boa ou má?
- É uma punição!
- A Mãe de Cristo foi punida?
- Lá está este! Ela cumpria uma profecia. Estava destinada.
- Teve ela opção de escolha? Se lhe perguntassem se ela quereria o destino que para ela foi escolhido, que é que achas que ela responderia?
- É uma graça muito grande ser escolhida para ser mãe de Deus.
-E aceitá-lo, não será o máximo da arrogância?
- Ser escolhida para ser a mãe de Deus tornado num acto arrogante? Aquilo foi um acto de verdadeira humildade.
- Assim o crês, assim o entenderei da tua parte. Porém, responde-me a mais esta questão. O orgasmo é uma propriedade exclusiva da heterossexualidade?
- Pelo que sei, li e ouvi acho que não.
- O prazer que o orgasmo propícia é, então, para todos. Ainda bem! Todavia alguns ficam privados de o atingir quer por opção do sagrado quer por incapacidade física ou psíquica. Estás de acordo?
- Deve ser.
-Vejamos o seguinte: e se a Mãe de Cristo não fosse heterossexual?
- Que disparate! Ela é um ser perfeito.
-Os homossexuais também são seres perfeitos. A ela de nada lhe serviu ser heterossexual, uma vez que ficou impedida de ter espasmos orgásticos ao ser inseminada pelo poderoso Jeová. Pronto. Aceitemos que ela era hetero, embora nada nos confirme tal tendência. Por que não pariu ela um ser feminino?
- Estava tudo destinado nas escrituras.
- Estava destinado a ser homem. E, muito naturalmente, para servir a causa do deus Jeová. Jeová não permitiu que se pusesse nada na boca das mulheres por alguma razão. A Mãe de Cristo nada disse de relevante para a posteridade. Esquisito... Deus não podia ser mulher. Era para ela muito perigoso andar pelo deserto sozinha. Podia ser violada. Ficava feio para um deus de respeito ver a filha ser comida em cima das areias escaldantes. Ele gostava delas tenrinhas e casadas sem terem ainda freudado com ninguém. Não foi buscar um coiro qualquer para lhe redimir os pecados tabelados. Não senhor! O que ele proíbe aos seus, fá-lo sem remorsos: não cobiçar a mulher do próximo. Ele não só não se satisfaz em fazer-lhe um filho, como obriga o pobre carpinteiro a registá-lo no Templo com o seu apelido. Um apelido nobre, pois, descendia de um outro grande putanheiro que foi rei e herói. O Rei David! Facilitaria muito a vida aos seus se o fizesse no modelo de Adão. Colocava-o depois à porta do Templo. Era mais económico e não chateava ninguém. O deus pai de Cristo parece um tarado sexual. Condena o sexo porque sabe que é impossível conter indefinidamente os impulsos sexuais aos desgraçados a quem lhes colocou aparelhagem eficientíssima para estarem cheios de tesão durante grande parte do dia e da noite. Ei-los, os filhos do Criador, munidos com falos e vaginas sedentos uns dos outros, porém impedidos de se saciarem. Por um lado quer que os filhos cresçam e se multipliquem e por outro quem o não fizer, mantendo-se casto, também é premiado. Impotente para as tendências carnais é por sua vez possuidor de um ciúme doentio. Ciúme que alimenta como motor de arranque para as suas apetências divinas. Não contente com o deserto saltou para a Europa mais refinado e mais assassino do que nunca. Envolve-se constantemente em guerras. Tira partido por uns em desfavor de outros. Aceita deuses menores desde que estes estejam ao seu serviço. Cria jogos de pensamentos irracionais e escolhe matilhas de lacaios para deduzirem da sua coerência. Está sempre do lado do mais forte, embora diga o contrário. E com aquela lata, fez-se compreender pelas grandes massas. Fez-se, também, respeitado mesmo com farda de campanha. Nas ditaduras, protege-se amando e mandando amar as abstracções que não servem senão para o altar dos compromissos. Dá-se ao luxo de mandar recados que são aceites por milhões de descendentes do seu laboratório celestial. E pior do que tudo, faz-se pagar e bem em moeda sonante ou outros bens transmigrantes. Amealha para o futuro em lugar secreto , porque sabe o que o espera quando as bestas acordarem e depararem com ele repimpado a transvorar o pão e o vinho que transforma em morcela e outras iguarias quando lhe convém. Rodeia-se de reis e rainhas a quem abençoa nos salões do deboche. Ao resto da manada envia embaixadores de meia tigela que escolhe entre a ralé e indigentes para melhor se fazer compreender , pois são eles os tradutores mais credenciados da sua palavra. Só fazendo de parvo é que eu o compreendo. E, ele, o Senhor das nossas mentes e corpos está aí à espreita para poder recuperar o que foi perdendo enquanto embebido e escondido nas coxas daquelas que seduziu pela palavra: A palavra do Senhor!
- A palavra do Senhor é o preservativo do pecado!
(Continua amanhã)
DIÁLOGOS EM BAÚ
(Conclusão) 18 de Junho

SEGUNDA PARTE

DIZERES
Num tabuleiro colocam-se duas bolas. Uma delas tem uma temperatura muito baixa. A outra está quente. A primeira está na posição A e a quente na posição B. Pede-se a uma pessoa que tem os olhos vendados e que desconhece o que se passa para apalpar as bolas no tabuleiro. Em seguida, troca-se a posição das bolas e torna-se a pedir à pessoa que repita o gesto de as apalpar. Ao solicitar à pessoa para relatar o sucedido , ela dirá que houve uma troca de posições das bolas. Por que razão não diz que no primeiro acto havia uma bola quente na posição B e outra, a bola fria, na posição A? E que no segundo acto estava a bola quente na posição A e a bola fria na posição B? Na realidade o que temos são dois casos isolados. Ou o conceito de troca é filho de sensibilidades ou é uma essência misteriosa impossível à razão humana caracterizá-la? As essências nunca estão isoladas a não ser quando nada representam. E quando nada representam não são caracterizáveis. Se a ideia de troca não fosse filha do que materialmente se pode trocar onde poderia ser aplicada? O imaterial não tem existência fora do material . Aquilo que denominamos de imaterial tem um cordão umbilical impossível de cortar, mesmo que esse cordão nos pareça invisível. Quase invisível... Sugere-se que se realce a seguinte questão: quando se isola o percurso de uma informação para o cérebro, isola-se o que é matéria ou o que é imaterial (espiritual-gíria linguística)? Nos neurónios circula informação. Em que sentido? Os neurónios que recolhem informação como se ligam às zonas do entendimento? Uma resposta pode ser aqui ser inventada. Os olhos estão nos objectos porque possuem a mesma matéria deles. Se não fosse assim como os poderiam identificar? No olfacto, como poderia ser possível cheirar (percebendo) um certo tipo de odor se este já não pertencesse (contido) naquele numa percentagem de eficiência? Não estaríamos a platonizar uma determinada ideia de cheiro isolada da realidade ? Nunca poderia ser compreendida uma cor se ela estivesse “detida” no órgão de visão! A vista nunca perceberia (para a reenviar) uma cor se esta já não estivesse composta na sua estrutura. O cérebro compreende as coisas porque as coisas são como ele. De outro modo estaríamos a crer em saltos no escuro da incompreensão. Toda a estrutura do cérebro está conforme a estrutura da natureza. O entendimento não reflecte o entendimento. O entendimento estende-se por caminhos que entende e se identifica. O pensamento que acompanha o entendimento é o pensamento do entendimento. Não volta para trás para ser entendido. O pensamento estende-se. O estender-se é identificação. Nesta condição, percorrendo a via do entendimento próprio é que as coisas são. Como pode o pensamento, princípio de identidade, enganar-se? Não existe engano para o pensamento. O que existe é a verdade angular, pertença de cada aparelho e da sua capacidade de intensificar o que possui de cada um dos factos. Os humanos respondem pelo seu campo angular. É deste que surgem opções que se entendem com o abstracto, assim como outras opções o rejeitam. Ideias e sensações baseiam-se na identidade de cada estrutura pessoal respeitando sempre os componentes que se arregimentam ao longo de uma prática de vivida e conseguida. A troca das bolas referidas no começo deste texto pertence a um composto de natureza física. Por essa razão o que se representa dela (troca) é de ordem física. De outro modo não saberíamos do que falávamos. Estaríamos a falar de “abstracção vazia”. Como se poderia fazer apelo a um conceito e sobretudo procurá-lo se fosse uma coisa vazia? Procurar um vazio? Será possível? Quem julga que a abstracção é vazia (ideia) tem de justificar o exercício de busca sem materializá-la. As ideias têm recheio. Quando se sente o frio, o percurso da informação circula não no abstracto mas no mundo físico: no mundo do cérebro. Não sai dele. E se saísse depois de ter entrado para onde se dirigiria? Este circuito é um circuito material. Se fica armazenado nunca seria no campo do abstracto. Isso seria um absurdo. Teria de saltar. Teria de se identificar-se com o abstracto. Onde circula o pensamento que informa sensibilidades? Onde circula o pensamento que transporta abstracções (ideias ditas imateriais)? Circulam no mesmo canal? Se isso não fosse assim teríamos de nos confrontar com dois canais específicos. Um levava a sensação de frio e outro a ideia de frio. Uma ideia de frio sem frio? Uma ideia obediente que mesmo imarerial não saía dos carris ou ficaria fechada no circuito material onde não houvesse buraquinhos para se pode escapar... Aqueles que se sentem bem no mundo da abstracção que se deleitem com ela. Os que por razões de ordem diversa não as concebem que se divirtam. Sobretudo com os orgasmos que até fazem estremecer os corpos. Precisamos de deuses que nos satisfaçam tanto na abstracção como no físico. Esses é que nos são queridos! A esses vale a pena amar. Mas, cuidado, estejamos atentos às suas taradices, perdão aos seus condicionalismos...
Manuel Melo Bento

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