Tuesday, November 28, 2006

 

NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação

XXX

De manhã, Laura está expectante. Emírcio sai para o escritório depois de ter tomado o pequeno-almoço servido por Inocência. Aurora prepara-se para ir à mercearia do senhor Manuel escolher os legumes e a fruta e entregar a nota de encomendas para mais tarde serem entregadas pelo marçano. Depois de ter ouvido a porta da rua bater, após a saída da cozinheira, Laura tranca-se por dentro do seu quarto e retira o lenço da gaveta da cómoda onde tinha escondido as caganitas das pombas. Em seguida, utilizando um pente, mistura as caganitas com um pouco de azeite até fazer uma mescla. Quando esta se encontra consistente, Laura abre a janela e olha para a rua onde nem uma alma viva vagueia. Puxa o banco do toucador para junto do parapeito e sobe para cima daquele. Com o lenço que contém a mistura de azeite e as caganitas numa das mãos e o pente na outra começa a pespegá-la contra os vidros da parte de cima e exteriores da janela. De repente, Inocência, que lhe vem trazer o pequeno-almoço à cama, bate na porta do quarto. Laura atrapalha-se, desequilibra-se saindo pela janela aberta vindo segundos depois a estatalar-se na rua. Num ápice, a rua enche-se de gente. Aurora e o senhor Manuel da mercearia mal chegados junto a Laura - que tem sangue a sair-lhe pela boca - gritam desesperadamente. Passados os primeiros momentos de espanto, Aurora resolve bater na porta da casa com muita força. Instantes depois, Inocência abre a porta.
AURORA
(A gritar)
Vai depressa chamar o senhor à secretaria! Diz-lhe que a senhora caíu da janela.
INOCÊNCIA
Ela não abriu a porta do quarto. Como é que ela caíu?
AURORA
Estúpida, põe-te já a mexer antes que te esborrache as ventas.

Aurora, o senhor Manuel da mercearia juntamente com um robusto curioso transportam Laura para a saleta onde a estendem no sofá. Laura continua a esvair-se em sangue. Enquanto Aurora não lhe coloca uma toalha na cabeça o sofá ensope-lhe o sangue.
Continua
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Sunday, November 26, 2006

 

NA SERVIDÃO DO DESEJO

XXIX

Depois da saída de Emírcio, Laura ajoelha-se diante da cómoda onde a estatueta de Nossa Senhora de Fátima continua iluminada pela lamparina de azeite.

LAURA
Diz-me o que deve ser feito, minha santa salvadora. Naquele tempo, bem dizia minha mãe que as desavergonhadas deviam ser castigadas com a pena de morte. Deus Nosso Senhor bem os destruiu em Sodoma e Gomorra. É o demónio que delas se apossa.

Neste preciso momento a janela do quarto abre-se. Uma rajada de vento impele a cortina. Laura olha-a espantada.

LAURA
Deus seja louvado, minha Santa Mãe! O Seu espírito iluminou-me!

Laura aproxima-se da janela do seu quarto que dá para a rua e olha-a. São dois andares até ao chão. Nesse momento, uma mulher atravessa a rua para se dirigir ao templo situado nas imediações. Pouco depois um cão vadio atravessa-a não sem antes farejar alguns dejectos deixados por outros cães. Laura arrasta o banco do seu toucador até ao parapeito da janela. Sobe para cima dele e volta a olhar para a rua. Sente tonturas e desce logo em seguida. Sai do quarto pé ante pé e dirige-se para o sótão. Chegada lá, abre a clarabóia e com as mãos procura, tacteando, caganitas de pomba que costumam arrulhar por perto. Recolhe algumas. Volta ao quarto e esconde-as, embrulhadas num lenço, na gaveta da cómoda onde a Santa Senhora , no tampo, continua iluminada.
LAURA
(Ajoelhando-se de frente para a cómoda)
Que Deus esteja comigo, nesta hora de tanto sofrimento. O que tem de ser tem muita força. Deus seja louvado! Amanhã, quando a Aurora for à mercearia já estará tudo resolvido. Nosso Senhor também sofreu muito para nos salvar.
Continua...
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Saturday, November 25, 2006

 
NA SERVIDÃO DO DESEJO

XXVIII

De manhã, Laura está no seu quarto. Emírcio, depois de ter tomado o pequeno-almoço, servido por Inocência, na sala de jantar, puxa de um cigarro.

EMÍRCIO
Não há lume nesta casa?

Inocência vai à cozinha e traz-lhe fósforos.

EMÍRCIO
Acende esse fósforo!

Inocência aproxima-se de Emírcio e faz o gesto de quem vai riscar um fósforo.

EMÍRCIO
(Pegando-lhe na mão)
Gostaste de ontem à noite?
INOCÊNCIA
É sempre bom... De cada vez é uma despedida e um susto. O que é bom não dura sempre.
EMÍRCIO
E se não casasses com esse tal americano?
INOCÊNCIA
Minha mãe matava-me!
EMÍRCIO
Ainda és muito nova para te casares. Podias fazer render o peixe por mais uns tempos.
INOCÊNCIA
Mas como?
EMÍRCIO
Dizes a tua mãe que queres casar mas que seria bom esperar mais uns tempos para aprenderes a cozinhar e vires a ser uma boa dona de casa.
INOCÊNCIA
Na América isso não é preciso. Até já me disseram que arranjar trabalho numa fábrica é logo a seguir ao dia em que lá se põe os pés. Depois, ganha-se muito dinheiro. E ele faz muita falta a meus pais.
EMÍRCIO
Que falta me vais fazer. Logo agora que me estou a habituar a ti. Vais encher-te de filhos e sei lá que mais. Aquela gente não sabe o que é gostar de verdade.
INOCÊNCIA
A gente habitua-se. Gente pobre é assim. Isto aqui em casa não vai durar muito. A dona Laura se descobre estou perdida. A senhora Aurora já nem me fala. Tenho medo que ela dê à língua. Eu sei como ela é!
EMÍRCIO
Nesta casa, quem manda sou eu! Basta estalar um dedo e substituo-a de um dia para o outro. Há fome e miséria por essas freguesias fora. Ela sabe o que é fome e da negra. Sejamos discretos. Ainda ontem lhe disse que tivesse muito tento na língua. Ela quase chorou. Calada é o seu dever. Eu sou o doutor Emírcio Pacheco. Chega-te aqui!

Inocência aproxima-se de Emírcio que a beija na boca. Emírcio despede-se de Inocência e sai.
Continua
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Friday, November 24, 2006

 

XXVII

No fim do dia, Emírcio chega a casa e dirige-se directamente para a cozinha onde pede a Inocência que lhe leve um copo com água morna à saleta. Aurora está a terminar o jantar. Laura que está retirada no seu quarto ouve o marido chegar, pois, ao contrário do costume tem a porta do quarto aberta. Ao assomar à porta do quarto vê, do cimo das escadas, Inocência dirigir-se para a saleta com um copo na mão. Laura desce as escadas silenciosamente. Na saleta, Emírcio agarra-se a Inocência.
INOCÊNCIA
Tenho medo! A senhora Aurora...
EMÍRCIO
Essa parva tem é de estar calada, senão vai para o olho da rua e fome não vai querer passar.
INOCÊNCIA
Não sei senhor!
Laura está à porta da saleta e põe-se a ouvir a conversa entre Emírcio e Inocência.
EMÍRCIO
Dá-me um beijo!
Agarra-se novamente a Inocência e beija-a na boca. A rapariga não resiste.
EMÍRCIO
Logo à noite, volta a pôr o cordel à porta depois de o amarrares ao teu pé. Faz isso depois de Aurora estar a dormir.
INOCÊNCIA
E se ela volta a fazer o mesmo?
EMÍRCIO
Eu vou à cozinha e basta olhá-la de frente para ela tomar juízo. Quem julga ela que é? Faz o que te digo e deixa o resto comigo.

Emírcio agarra-se à rapariga metendo-lhe a mão por debaixo das saias. Apalpa-lhe as nádegas e ao mesmo tempo beija-a muito. Laura volta para o seu quarto sem fazer barulho. Acende a lamparina de azeite que está em cima da velha cómoda e que ilumina a pequena estatueta de Nossa Senhora de Fátima.

LAURA
(De joelhos)
Senhora, Mãe de Deus, dai-me forças. Dai-me forças para me vingar daquela malvada. Tenho de a castigar! (A tremer) Não quero escândalos! Vai morrer! Tem de morrer! Vou ter calma, muita calma! Não me posso precipitar. Amanhã vai ser o seu último dia. Mãe de Deus, Mãe Santíssima , ajudai-me!

Laura recompõe-se e depois desce as escadas. Vai fazer companhia ao marido que acabou de beber a água que Inocência lhe trouxera.

LAURA
(Meio a sorrir)
Outra vez azia?
EMÍRCIO
Não é nada! O costume. Mas não me vai tirar o apetite para jantar.
LAURA
Ainda bem.
Continua
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Monday, November 20, 2006

 

NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação

EMÍRCIO
Os deuses pecaram e ficaram prisioneiros no templo das vestais. Sou Emírcio, um penitente que sobreviveu da vertigem do desejo e que se encontrou no erro. Viverei sonolento, mas viverei outra norma. Não me transformarei no cordeiro vitimizado no altar de Afrodite a quem Eros persegue por nada possuir de seu a não ser a herança efémera de Penia e de Poros.
VOZ
Que mais te falta para seres a sucursal da imbecilidade humana? O amor não pode ser retardado. O amor não pode ser proibido!
EMÍRCIO
É demais para mim. Eu li os papiros do sofrimento. Existem regras para serem cumpridas. A minha vida é a minha norma!
VOZ
Os palácios são o cárcere dos seus donos.
EMÍRCIO
Grilhetas, quem não as tem? E quantas vezes, não são elas necessárias? (Emírcio esforça-se por sorrir) É a nossa condição de civilizados. (Perfuma-se)
(Laura chama Emírcio. Vão jantar fora.)
EMÍRCIO
(Cofiando o bigode)
Já vou, já vou! Não é chique chegar muito cedo...
Continua
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Sunday, November 19, 2006

 
DOMINGO, 19.11.06

NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação

EMÍRCIO
Ouvi ruídos. (Respira fundo) Levantei-me, ainda estavas a dormir profundamente. Depois fui averiguar. De repente, um grande estrondo se fez ouvir. Apanhei cá um susto de morte. Qualquer coisa caíu lá em cima. Parece-me que foi no quarto das criadas. Vou vestir o pijama e pôr as pantufas...
LAURA
Mas, olha para ti! Estás com os pés no chão. Ainda apanhas alguma.
EMÍRCIO
Vou ver o que se passa.

Emírcio volta a subir as escadas e entra no quarto das criadas.

EMÍRCIO
(Para Inocência)
Que é que houve aqui?
INOCÊNCIA
Ai que desgraça!
AURORA
Anda aqui mão maligna!
EMÍRCIO
Toca a limpar isto tudo e bico calado antes que eu me irrite deveras.

Emírcio recolhe o cordel e retira-se.

XXV

(Depois de tudo voltar à calma, Aurora está de pé e coloca as mãos nas ancas.)

AURORA
Estafermo! Grande puta! Queres dar cabo da tua vida pondo-te debaixo daquele porco. Que queres tu fazer com o americano que quer casar contigo? Maldita vida a minha que nunca tive qualquer sorte na vida. Marçanos e magalas bêbedos foi tudo o que me coube!
INOCÊNCIA
Deus tenha piedade de mim.
AURORA
Delambida! Ingrata! Aquele nojento mandou-te para o hospital! Tenho vontade de te esganar.
INOCÊNCIA
Não tive tempo para sonhar. A mim só me coube a fome, a pancada e o trabalho. E toda a gente à minha volta a dizer-me que era assim que ganhava o Céu.
AURORA
E que outro fim julgas que gente como nós tem como prémio?
INOCÊNCIA
Mas é tão pouco o que me cabe!
AURORA
Tu não és nada! Só tens deveres a cumprir. Só tens direito a uma coisa!
INOCÊNCIA
Qual?
AURORA
O sofrimento!
INOCÊNCIA
A juventude e a esperança também são sofrimento?
AURORA
Saíste-me uma grande vaca! Esqueces que do lugar de onde a gente vem, até os porcos, a quem lhes é oferecido curral, acabam por ter mais direito à vida, no tempo da engorda?
INOCÊNCIA
A senhora Aurora, que vem das profundezas da servidão e que todas as noites pragueja contra os patrões com a boca tapada pelos cobertores, só pede castigo em vez de recompensa para si e para os iguais a si. Já parece a senhora Matilde.
AURORA
O que tu tens nessa cabeça!
INOCÊNCIA
Eu só queria ver as estrelas que dão tudo e não pedem nada em troca.

XXVI

(Emírcio, na casa de banho, mira-se ao espelho.)

EMÍRCIO
Mortal! (Sorri) Os deuses, esses grandes apaixonados, também sofreram de paixão. Apolo perdeu Dafne, porque esteve perdido de amores.
VOZ
Os deuses, amando, fizeram história. Vê se aprendes com eles antes que morras como homem.
Continua
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Monday, November 13, 2006

 
SEGUNDA-FEIRA 13.11.06

NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação

XXIV

Emírcio e Inocência vão-se encontrando regularmente até que um dia... No sótão, Aurora - que já anda de pé atrás – desconfia de qualquer coisa quando vê Inocência esconder o cordel debaixo da almofada. Finge dormir. Pouco depois, Inocência, julgando Aurora a dormir, enrola o cordel ao pé, como de costume, e coloca o resto à porta que dá para o sótão. Aurora deixa que Inocência comece a dormir. Retira-lhe o cordel do pé e amarra-o no lavatório, onde põe dentro da bacia o jarro com água e por cima deste o penico com urina. Emírcio, por volta das três horas da madrugada e depois de se certificar que Laura dorme, dirige-se para o sótão. Emírcio está descalço e de roupão. Sobe as escadas de gatas para não fazer barulho e para melhor se conduzir na escuridão. Quando dá pelo cordel puxa-o como habitualmente. Não obtém resposta. Insiste com mais força. Segundos depois, o lavatório, o jarro e o penico tombam estrondosamente no sobrado de madeira fazendo acordar Aurora e Inocência que estremunhadas gritam desatinadas. Emírcio foge atabalhoadamente e vai parar ao quarto onde a mulher, que também ouviu o barulho, já tinha ligado a luz eléctrica. Laura fica espantada.
LAURA
Que aconteceu?
Continua
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Sunday, November 12, 2006

 

DOMINGO, 12 NOV.

NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação

XXIII

Pela madrugada, ambos, Emírcio e Laura, chegam a casa vindo do velório. Emírcio finge-se cansado. Laura está cheia de sono. Vão juntos para o quarto. Passado um bom bocado, Emírcio verifica se a mulher dorme. Depois de confirmar o sono pesado de Laura, levanta-se devagarinho e dirige-se para o sótão, onde dormem as criadas. Puxa o cordel que está enrolado num dos pés de Inocência como tinha sido combinado e espera. Pouco depois aparece Inocência.
EMÍRCIO
(Sussurrando)
Vou para a saleta e lá esperarei por ti. Segue-me daqui a pouco e cobre-te com o lençol.
INOCÊNCIA
(Muito baixinho)
Sim senhor! Mas não era na cozinha...
EMÍRCIO
É para a saleta que vamos.

(Emírcio está na saleta. Acende um pequeno candeeiro e depois tapa-o com um pano de renda azul. Pouco depois, Inocência está à porta. A luz azul, embora fraca, faz transparecer o seu corpo nu debaixo do lençol de linho branco há muito gasto pelo uso.)

EMÍRCIO
(Sentando-se no sofá)
Senta-te perto de mim!

(Quando Inocência se inclina para o sofá, Emírcio puxa-a suavemente e senta-a sobre as suas pernas. No mesmo instante o lençol desliza sobre o corpo da rapariga e cai no chão deixando ver a nudez dela. Emírcio beija-a na ponta dos seios tal como Laura o tinha ensinado nos primeiros tempos de casado. Depois, percorre o corpo de Inocência com os dedos. “Emírcio, toca-me levemente como se o meu peito fosse uma hóstia não benzida!” Emírcio ainda se lembra do pedido de Laura. Emírcio senta Inocência no sofá. Pondo-se de joelhos diante dela, beija-a no umbigo.)
INOCÊNCIA
(Com a cabeça para trás)
Ai Senhor!!!
EMÍRCIO
Volta-te!

(Inocência obedece. A sua pele de um branco-amarelo-canela ao receber a luz azulada do candeeiro, que enche a saleta, toma a cor de “azul Cézanne” mas de contornos realistas.)

EMÍRCIO
(Começa a beijar a parte de fora das nádegas nuas de Inocência e daí parte para o roliço interior da coxa, onde uma pequena penugem aloirada faz fronteira. Extasiado, pára para tomar fôlego.)
Gostas?
INOCÊNCIA
Ai, meu bom Jesus!

(Emírcio, depois de muito a lamber, levanta-se e, com a rapariga na mesma posição, toma-a como mulher. Uma mulher de dezassete anos feitos.)
Continua
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Wednesday, November 08, 2006

 

NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
(Emírcio fecha a porta da saleta. Levanta as saias de Inocência e arrasta-a até ao sofá. Apercebe-se que ela não tem roupa interior e como um louco deita-a no chão. Ao procurar penetrá-la Inocência sente dores. Emírcio faz uma paragem recobrando a frieza do raciocínio. Põem-se ambos de pé.)
EMÍRCIO
Logo, quando voltar do velório, espera um tempo e vai ter comigo à cozinha. Às três horas, estarei lá.
INOCÊNCIA
A essa hora vai custar levantar-me da cama. Sem relógio e com o sono pesado como é que pode ser?
EMÍRCIO
Amarras um cordel ao teu pé e deixa a outra extremidade à saída do sótão que eu o puxarei até acordares. Não faças barulho para a outra não acordar. Tem cuidado!
(Emírcio beija-a novamente. Abre muito devagar a porta. Inocência sai.)
Continua

Monday, November 06, 2006

 

NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação

EMÍRCIO
A tua beleza é a agonia do meu viver. Solta os cabelos! Gostava de os ver caídos.

(Inocência desprende o cabelo dos ganchos que o seguram, enquanto Emírcio, com os dedos os afaga.)

INOCÊNCIA
Não sei o que sinto quando estou perto do senhor doutor. (Sorri, deixando ver os dentes brancos e saudáveis.)
EMÍRCIO
Que lindos dentes os teus!
INOCÊNCIA
Quando como maçãs, ficam assim.
EMÍRCIO
(Puxa-a para si e beija-a na boca com muita sofreguidão. Depois empurra-a.)
Que diabo de história é essa do noivo americano?
INOCÊNCIA
Somos muito pobres!
EMÍRCIO
Gostas dele?
INOCÊNCIA
Credo, nem sequer o conheço!
EMÍRCIO
E de mim? (Fica muito encarnado)
INOCÊNCIA
É outra coisa. Fico estremecida. É como estar na Missa do Galo. É uma alegria de festa. (Pega-lhe nas mãos) Nunca toquei mãos de homem tão lisas. São como a pele das bexigas de porco.

(Emírcio apalpa-lhe os seios pondo as mãos por debaixo da camisa de linho.)

EMÍRCIO
Quero-te tanto quanto o silêncio quer a nudez da noite.
INOCÊNCIA
O destino vai separar-nos.
EMÍRCIO
(Continua abraçado a Inocência)
Como seria bom podermos estar a sós!
INOCÊNCIA
Isso não pode ser!
Continua
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Friday, November 03, 2006

 

NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação

VOZ
Danados são os desejos que consomem a alma porque a tornam no repositório da amargura. Condenados estão os que sofrem do frio do infortúnio e da desventura porque não riem. A cobardia, companheira infatigável do bom senso, apela a que soframos humildes e submissos os destemperos desta vida. Rebelemo-nos! Abençoai ó Deus, os que vencem o inimigo, porque reinarão sobre os alimentos. Não sigas o mito antigo para não te tornares na invenção lendária que gratifica os infelizes e os consola.
EMÍRCIO
Por que não se reflecte em mim o fogo do descernimento nesta hora de muita dor? Por que vivo este fadário, resto carcomido das hesitações da ciência dos homens.
VOZ
Calar a emergência do prazer trazer-te-á a mortalidade do embrião e tornar-te-ás no cemitério da processão divina: a tumba de Deus.
EMÍRCIO
Lesante pensamento! (Com raiva) Como interpretar o idioma do amor?
VOZ
Pela pureza da imaginação!
EMÍRCIO
Está travada pelos padrões de referência.

(Inocência aparece à porta da saleta)

INOCÊNCIA
O jantar está na mesa, senhor doutor.
EMÍRCIO
(Aproxima-se de Inocência e afaga-lhe o rosto)
Não nasceu como as ervas, mas é raiz de grande porte esta afeição. “O que é violento não é duradoiro.” (Referência perdida. Talvez helenística?) E tu, serena contemplação (olha-a profundamente nos olhos), transformaste este consumidor de costumes num consumidor de sonhos.
INOCÊNCIA
(Encostada a Emírcio)
Gostava de poder estar só um minuto, apenas, dentro da sua cabeça.
Continua
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Thursday, November 02, 2006

 

NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação

INOCÊNCIA
Seja o que Deus quiser! Se é a sua vontade. E meu pai?
CAMPONESA
Fala-se à Tia Júlia para apalavrar o encontro com teu pai. O que virá segue a direito. Com os homens é mesmo assim. É preciso não esquecer que o americano tem pressa.
INOCÊNCIA
Pois Alevá!
CAMPONESA
Ele não te há-de querer a servir. Cedo, vais ter de deixar esta casa.
INOCÊNCIA
Seja tudo por amor de Deus! Havemos de melhorar a nossa vida.
CAMPONESA
Abençoada! Abençoada da minha alma.

XXII

Tarde fria e cinzenta. Chove. Emírcio, encostado à janela da saleta, olha as ruas vazias da cidade triste. Laura entra. Vem vestida de preto.
LAURA

Vou para casa da tia da Márcia. Espero lá por ti. Pus qualquer coisa na boca. Não te preocupes comigo. O jantar daqui a pouco é servido.
EMÍRCIO
Era uma morte esperada.
LAURA
A tia gostava muito dela. Deixou-lhe tudo. Aos outros sobrinhos, nada.
EMÍRCIO
A Márcia não a visitava muito.
LAURA
Não era interesseira.
EMÍRCIO
Já sabia do testamento. Vou mudar de roupa antes de me sentar à mesa.
LAURA
A gravata preta está na gaveta de cima da cómoda. Tira-a de lá. (Pausa) Esquecia-me de te dizer que vamos ficar outra vez sem criada de fora. Arranjou um calafona para casar.
EMÍRCIO
O que é que estás para aí a dizer?
LAURA
Hoje, de manhã, veio cá a casa a mãe da rapariga. Veio dar-lhe a novidade.
EMÍRCIO
(Disfarçando a irritação)
Esta gente inventa cada uma. Agora, até casam como os ricos, nunca se libertando da sua condição.
LAURA
Vou prevenir as criadas que jantas daqui a pouco.

(Laura sai. Emírcio senta-se no sofá e tapa a cara com as mãos.)
Continua

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