Saturday, June 10, 2006

 

A FILOFLA

A FILOFLA

PERSONAGENS:

José de Almeida
Rainer Daehnhardt
Gustavo Moura
João Bosco
Gualberto Cabral
Jaime Gama
João Grande
Gabriel do Lys
Primeiro Filofla
Segundo Filofla
Terceiro Filofla
Criada
Simpatizantes
Estrangeiro
Empregado
Subchefe Açoriano
Comandante da Guarda
Tenente
Segundo General da Filofla
Terceiro General da Filofla
Quarto General da Filofla
Quinto General da Filofla
Recém-Chegado


I

(A cena representa a residência isolada de Gustavo Moura. É de noite. João Bosco entra pelas traseiras, pela porta da cozinha. Um tacho fumega: é polvo guisado em vinho-de-cheiro. O político persigna-se. Num quarto contíguo, algumas personagens aguardam sentadas.)

BOSCO
(Entra no quarto, tapando o nariz com um
lenço azul)
Ó filhos dos Açores, meus irmãos, adoradores dos mesmos deuses! Por vós aceito o cálice da revolta.

MOURA
(Levantando-se com os olhinhos fechados)
Ó senhor, ó santo, ó divino! Se quiseres ajuntar a esse cálice um pouco de polvo guisado, é com o maior manifesto que acordamos dividir o nosso tacho.

BOSCO
(Olhando embevecido para um santinho de Nossa Senhora de Lourdes que se encontra em cima de um contador)
Ouvi irmãos! A mim, nada de alimentos impuros. Guardai para vós a vossa sofreguidão. Quando chegar a altura própria, se chegar..., então, beberei um chá convosco.
MOURA
Ó meu bom virgem, que a raça ancestral de quem descendes, te torne viril de entre os mortais!
BOSCO
Não vejo José. Oráculo algum me diz que não está por perto. Por onde andará o nosso virtuoso condutor?
MOURA
Possa eu, com a minha modesta fortuna mas com uma alargada prole, responder à tua sacrossanta pergunta. Sabei ó pio, que o vosso preclaro e augusto amigo, teu companheiro nas lides políticas de Antigo Regime, está no Templo da Matança fazendo esclarecimentos políticos de ocasião!
BOSCO
(Dirige-se a MOURA)
Ó aurifulgente editorialista , oráculo de meu conhecimento me diz que José se diverte no Templo entre morcelas e torresmos e envolto em louro com que as Ménades (1) o presentearam.
MOURA
"Solidariedade com a verdade, denuncia com a mentira." (2) Sabei ó pio que ele é muito querido e popular. Para além disso, seu lato corpo de alimentos substanciais necessita.
PRIMEIRO FILOFLA
Sim, assim seja! Mas, seja eu punido pelos deuses se não é o único bem terreno que procura.
SEGUNDO FILOFLA
Ó ilustre iconólatra!, (Dirige-se a BOSCO) que os nossos pensamentos se purifiquem louvando as nossas virtudes. José comete, de facto, essa falta. Mas, por Brómio, ela é tão inofensiva. José, meu bom amigo, é o décimo oitavo filho de uma família do campo. As matanças são as suas Dionísias Rurais.
MOURA
Décimo oitavo filho! Um filho infantil?
(José surge, de repente, trazendo numa das mãos "As Bacantes" (3) e na outra torresmos embrulhados no matutino "Açores".)
JOSÉ
(Repara que os presentes se assustam.)
Ah! Ah! Por que estais vós assim assustados? Por que vos calais? Cometeis, de novo, ardilosas habilidades que não quereis declarar?
BOSCO
(Abraçando José com força.)
Camarada, está tranquilo! Observo a justiça e tenho boas razões para estarmos todos aqui.
(Gera-se o pânico. Os Filoflas ficam furiosos e exigem a Bosco explicações pelo intruso e suspeito termo por ele proferido. O Supremo Chefe da Filofla apercebe-se do temor que tal terminologia causou e intervém.)
JOSÉ
Calma companheiros! É tudo uma questão de fraseologia desajustada ao meio. As palavras não matam pela violência... Mais tarde explicarei o que entendo por violência.
BOSCO
(Com muita palidez)
Arrancai-me das mãos o terço se vos ofendi e se vos pareci infiel. (Dirige-se ao Segundo Filofla) Tu que comigo arrastaste o rabo pelos bancos da escola, toca-me, aproxima-te de mim e confirma em voz alta se o termo camarada não era por nós usado quando cantávamos na catequese?
TODOS EM CORO
(De pé e muito felizes)
Oh sim, sim!
Oh sim, sim, sim!
(Entra uma criada)
CRIADA
Ó patrão, está ao telefone um senhor que fala à moda e pergunta se quando acabar a reunião com a Flátima se sempre vai cear a casa dele?
MOURA
Diz-lhe que telefone mais tarde! Não combinei ceia nenhuma!
CRIADA
Não lhe devia dizer nada se estivesse acompanhado. Que escuridão está aqui neste quarto!
PRIMEIRO FILOFLA
"Nas garras do estrangeiro não acho saída nenhuma, quer me obedeça, quer actue por si, não se cala! (4)
JOSÉ
Percebo amigo, Primeiro Filofla, as tuas preocupações. Mas, eis-me aqui qual cavaleiro de veloz corcel, com o fim lícito de fazer e de realizar Açores. Em mim os Açores são! Eu sou a força e a esperança de todos! Em mim a independência!
TODOS EM CORO
(Com ar alegre, quase idiota)
Oh sim, sim!
Oh sim, sim, sim!
JOSÉ
(Continuando)
Em mim a independência! O deus em mim e também um pouco em vós. Defender-vos-ei do dolo que o estrangeiro maquina contra vós. Eu sou a arma do povo, eu sou a palavra. Eu sou a palavra que se faz eco em liberdade.
PRIMEIRO FILOFLA
"Falas bem; já há muito te mostraste esperto..." (5)
JOSE
(Abre "As Bacantes" e lê uma frase)
"Estas coisas o deus me inspirou."
BOSCO
(Indignadíssimo)
Pudor! Pudor! O deus também me inspirou. E, também, está comigo. A flauta divina ressoa sobre as nossas duas sagradas cabeças. Os sacerdotes dos templos estão connosco também.
TODOS EM CORO
(Menos Bosco)
Oh sim, sim!
Oh sim, sim, sim!
Ó puro, ó piedoso "dei"! , (6) nós te vimos nos ofícios. A tua fronte bendizemos, o deus está contigo também!
SEGUNDO FILOFLA
(Dirige-se a Bosco)
As coisas bonitas que disseste iluminam a minha mente. Oh, como é bom viver entre os penemortais!
TERCEIRO FILOFLA
E, se regássemos as nossas gargantas com uísque da Base (7), para melhor pensarmos?
BOSCO
(Calmo e professoral)
"Não, não; é perigoso beber. Quando se bebe arrombam-se portas, há cacetadas; e depois de se cozer a bebedeira, é preciso pagar as despesas feitas" (8)
MOURA
Ó divino intérprete! Há lá nada melhor do que receber o valor dos prejuízos feitos pelos ébrios arruaceiros vingadores! Acabe-se já com a prodigalidade das ameaças. (9)
(Moura sai do quarto. Numa outra dependência da sua grande casa aproxima-se de uma das janelas e faz um sinal com lume de fósforo para o exterior.)
MOURA
(Entrando com um sorriso casto)
Melhor seria passarmos a outra sala: o frio gela-me as mãos.
SEGUNDO FILOFLA
Medo?
MOURA
Circulação.
TERCEIRO FILOFLA
(Falando baixo para o Segundo Filofla)
Que faço do gravador?
SEGUNDO FILOFLA
Valha-te Epafo! (10) Devias ter trazido o mais pequeno.
TERCEIRO FILOFLA
Tinha as fitas estragadas.
(Na outra sala)
TODOS EM CORO
Trabalhemos! O deus que nos inspire. Carentes estamos do seu hálito hedonista, criador de grandes felicidades e motor da visão do Mundo.
BOSCO
(Desenrola maços de papel e estende-os por cima de uma mesa.)
Eis os estatutos!
JOSÉ
(Brincalhão)
"Opus" tua? (11)
BOSCO
(Apontando os maços de papel com o alvo dedo)
Os Estatutos da Filofla!
TODOS EM CORO
" Alva pomba, que meiga aparecestes
Ao Messias, no rio Jordão,
Estendei vossas asas celestes
Sobre o povo do orbe cristão!
Entre névoas de séculos..." (12)
JOSÉ
(Tentando retomar o domínio da situação que descambara subtilmente para Bosco.)
Abaixo o colonialismo! Fora com os tunantes que em tramóias de voto foram feitos governantes!
TODOS EM CORO
Liberdade! Liberdade! Salvemos os velhos das ilhas dos amantes das filhas que entre coxas e lençóis trocam os nossos dólares lá fora.
BOSCO
(Em pose quase litúrgica, aponta com ambas as mãos os Estatutos.)
Ó filhos do deus, isto é o resultado de muita vigília gloriosa, de muito lúcido trabalho e de muita inspiração divina! O deus protege-me! Eu sou o protegido olímpico! O deus disse-me que sem estatutos não podemos ser independentes. O comunismo rapace das vossas fazendas está à porta. O estrangeiro que nos governa está de conlui com Moscovo. Estaremos perdidos se não nos estatuirmos!
TERCEIRO FILOFLA
Abaixo a prostituição! (13)
JOSÉ
(Dirige-se a Bosco)
Eu não deixarei! Tu bem o sabes. Acima dos Açores só o Olimpo hegemónico. Armarei o povo se tal for necessário! (14)
BOSCO
Por enquanto, não é preciso violência. Contigo e em paz, unificarei a Nação Açoriana.
JOSÉ
Queres dizer?
BOSCO
Governarei e tu serás o Chefe da Nação!
JOSÉ
Está isto que dizes contemplado nos estatutos?
BOSCO
Nos meus estatutos, todos estão contemplados. Porém, de princípio, deveis respeitar as profecias do Oráculo da Sapateia. Ganhando as eleições, ides assistir ao cumprimento integral das minhas promissões.
JOSÉ
(Fingindo-se crédulo)
Confiamos em ti e nos sacerdotes do Templo da Sapateia!
TERCEIRO FILOFLA
(Levantando-se)
Isto merece ser festejado! Por Dioniso! Quem me traz uma taça?
SEGUNDO FILOFLA
Como podes pensar em beber, se neste momento estamos a governar os Açores?
TERCEIRO FILOFLA
E que ministério me dão?
SEGUNDO FILOFLA
Eu, na casa de meu pai, aprendi a fazer contas.
TERCEIRO FILOFLA
Naquela mercearia tu só tomavas conta do rol dos fiados. Se calhar querias ser o ministro das Finanças. Eu sei fazer contas melhor do que tu. Na escola, as minhas notas eram mais certas do que as tuas.
SEGUNDO FILOFLA
Eu vou muito mais vezes à missa do que tu. Raramente te vejo na igreja. E isso pesa muito. (Volta-se para os companheiros que questionam Moura acerca do vinho que irá acompanhar o petisco.) Vocês não acham?
MOURA
(Contendo o riso)
É preciso não esquecer o confissionário.
SEGUNDO E TERCEIRO FILOFLA
(Em coro)
Todos os sábados me confesso!!!
MOURA
A decisão é difícil. Questionemos outros altares.
BOSCO
Acalmai os vossos ânimos. De começo, só eu governarei para não levantar suspeitas aos estrangeiros.
MOURA
Sozinho?
BOSCO
(Para Moura)
Bem... Tenho um grupo! Podeis estar descansado, pois todos eles pertenceram à Mocidade Portuguesa.
JOSÉ
Competentes? Idóneos?
BOSCO
Sem dúvida!... Para além de gostarem muito de bichos (15), nunca faltam aos ofícios em honra do deus.
MOURA
(Dirige-se a José baixinho)
"Há tanto burro a mandar
Em homens de inteligênvia
Que até fico a pensar
Se a burrice é uma ciência
Paciência... (16)
TODOS EM CORO
(Menos Bosco)
Assim sendo, para a frente ó rosto sorridente! Tu és a colheita que o nosso povo semeou. Morte aos ímpios, sem deuses, que também concorrem às eleições. Queimem-se no Hades (17) os hereges! Governa à vontade ó hierático de ejaculação litúrgica!
BOSCO
Vencerei o Minotauro mesmo sem Teseu. (18)
(Continua amanhã dia 13 de Junho)



Posted by Picasa

Comments: Post a Comment



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?