Tuesday, June 06, 2006

 

LÁGRIMAS (CONTINUAÇÃO DE SEGUNDA-FEIRA)

- Tantas!

- Morrer naturalmente e morrer não naturalmente, será? Qual delas é pertença das leis divinas?
- Morrer naturalmente.
- Morrer de velhice, por exemplo?
- Sim.
- Morrer-se vítima de um abalo de terra é morrer naturalmente?
- Claro que não!
- Os sismos pertencem à esfera das regras da natureza e por conseguinte, segundo a tua lógica religiosa, às regras de Deus que criou o Mundo?
- Certamente.
- A estrutura geológica do Mundo a que fizemos referência e que nos permite dizer que a lei dos seres vivos não é o suicídio mas a manutenção da vida, obedece à criação divina como afirmaste. Pergunto-te se a criação do Mundo é um acto consciente ou é um acto do acaso?
- Sendo obra de Deus não é efectivamente um acto do acaso.
- Achas que o teu Deus irá pedir contas ao planeta Terra por ter dado origem a cismos que matam seres vivos, incluindo seres humanos?
- Que disparate!
- Vai pedir contas aos animais pelas suas actividades ferozes de uns contra os outros?
- Outro disparate!
- E aos homens?
- Isso é outra coisa. O homem sendo um ser responsável, responderá pelos seus actos.
- Um homem que cometa suicídio corre o risco de ser repreendido pelo teu Deus?
- Será castigado.
- Mesmo sendo um acto inconsciente?
- Deus é que sabe!
- Para ti é um acto inconsciente, no entanto, para o teus Deus não sabes.
- Não sei porque não sou Deus.
- Mas, o que te autoriza a condenar o suicídio em nome das leis da vida que o divino criou?
- Deus não admite o suicídio e castiga aqueles que o praticam.
- O teu Deus deve ser bom e justo e outras coisas tais?
- Evidente!
- Ou ele castiga os suicidas porque são inconscientes ou os castiga porque são actos de pecado de seres conscientes.
- Ele tem de os castigar. Ele tem de os condenar. Não pode ser de outra maneira.
- Bem, segundo a tua excepção, a greve da fome, por uma causa justa, será a única forma de suicídio que escapa a ser classificada de inconsciente. Mesmo assim não deixa de ser suicídio e quem o comete sujeita-se a ser condenado pelo teu Deus.
- Quem disse que Deus o condenaria?
- Se Deus não o condena, também abre excepção àquele que comete suicídio. Absolve uma espécie e condena outra. Não será?
- É capaz.
- É que ele se condenasse um acto de suicídio consciente, tendo em conta uma causa justa, estaria, certamente, a cometer um erro.
- Deus não erra!
- Ainda bem. Imagina-te em frente a uma jaula de leões. Se abrires a porta e nela penetrares o que acontece?
- Comiam-me!
- Se entrasses por tua livre iniciativa e sabendo, como qualquer pessoa, o que te aconteceria, não estarias a cometer uma espécie de suicídio?
- Claro!
- Imagina-te na Roma Antiga.
- E depois?
- A conversão ao Cristianismo levava-te à cova dos leões no Coliseu. Tu conscientemente optavas por te converteres e a anunciar a tua tomada de posição. O que te esperava?
- Seria levado aos leões.
- Conscientemente?
- Conscientemente!
- Uma espécie de suicídio?
- Qual suicídio!
- Se sabias de antemão que porias a tua vida em risco e tomaste a decisão conscientemente, esta decisão que te levaria à morte não é uma forma voluntária de quereres morrer por uma causa?
- É uma forma de morrer por uma causa divina. Sim! Eu chamo a isso martírio.
- Chama-lhe o que quiseres que eu estou esclarecido.
- Deus aceita o sacrifício da vida dos seus em Sua honra.
- Morrer voluntariamente por uma causa justa?
- Sim!
- A greve de fome. Lembraste? Aqui o tema é que difere. Diz-me uma coisa: e se um pagão se sacrificasse ao seu Deus, considerarias um suicídio?
- Depende. Se ele acreditar no que está a fazer, acho que não.
- E se não acreditar?
- É tolo!
- Um martírio ou um suicídio? Decide-te.
- Outra vez? Martírio!
- Já estou esclarecido. Para ti martírio. Para mim suicídio. No entanto, quando se é morto pelos maus em defesa do nome do teu Deus é-se mártir mesmo que não se queira morrer e se tenha sido apanhado desprevenido.
- Sim!
- E se uma pessoa sendo cristã naquele tempo e negar sê-lo para não morrer , o que é que achas que essa pessoa é?
- Cobarde!
- Consciente ou não?
- Consciente, mas cobarde.
- Logo, os mártires não são cobardes?
- Não!
- Os cobardes não se suicidam?
- Não, se são cobardes!
- No momento em que se aceita morrer por vontade própria e em nome de um Deus, é-se herói e mártir. Isto porque a causa é nobre.
- Herói?
- Se se é o contrário de cobarde.
- Hum!
- E estas causas são as causas justas e divinas. Por estas já se pode morrer por vontade própria e consciente. Causas justas e divinas não serão causas morais e religiosas?
- Sim!
- Logo, o suicídio justifica-se pelas causas morais e religiosas.
- Nem todas as causas morais e nem todas as causas religiosas.
- Quem está apto a redigir as licenças do suicídio nessas áreas?
- A interioridade de cada um.
- Essa interioridade é consciente ou inconsciente?
-Lá vamos cair no mesmo. E o aço?
- Só queria saber o que legitima uma parte do suicídio e o que o torna legal aos olhos de todos nós. Sabemos que o consciente e o não consciente não estão qualificados para serem uma medida universal para poder resolver o problema. O consciente é parcial assim como o não consciente. E não somos nós quem vai decidir se o suicídio é um acto consciente, heróico, mártir, justo, antiprogramador, bom, reivindicativo ou se o contrário...
- Acho bem. Deixemos a Deus a última palavra.
- Será uma atitude consciente?
FIM
Nota: Obrigado por me ter lido até aqui.
Manuel Melo Bento
Terça-feira
06/06/06

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