Saturday, June 24, 2006

 

NO REINO DOS APEDEUTAS - PARTES II, III IV

I
(Nau que demandou a Índia reconstruída e assente num enorme carro puxado por cavalos da Guarda Nacional. Uma centena de populares arrasta-se atrás cercada por um milhar de polícias. O itinerário da caravana está programado com paragens. Esta dirige-se da Rua da Emenda para a Rua dos Clérigos. dentro dos camarotes da nau, várias personagens da cena política portuguesa esticam as cabeças pelas vigias e procuram equilibrar-se quando o carro estremece ao passar pelos buracos e pelas valas da via.)
SALAZAR
(Cumprindo o programa das paragens, Salazar enfia a cabeça através do camarote a fim de discursar. A vigia encontra-se tapada por uma redoma de vidro (pertença de dona Maria, sua criada e suposta companheira) que apresenta alguns furos.)
Prometo-vos a recuperação económica em apenas três meses; o fim do obscurantismo e da anarquia. Auguro uma nova era dourada para todos os portugueses. Sei muito bem o que quero e para onde vou.
MULTIDÃO
(Acossada pela polícia para que aplauda)
Quem Vive? Salazar!
Quem manda? Salazar!
(Salazar recolhe a cabeça e fala para dentro do camarote com um frade das Áfricas, dos Arquipélagos e das Índias.)
SALAZAR
Frade Cerejeira, diga-me quantas paragens ainda faltam? É que já estou farto de repetir este discurso!
FRADE CEREJEIRA
(Este frade foi feito cardeal de muito boa fama. Sorria sempre em público, até mesmo quando confirmava milagres.)
(Levantando a batina, procura o protocolo)
Apenas três Excelência!
SALAZAR
Estou muito cansado. Na próxima paragem, só meto a cabeça e não faço mais nada.
FRADE CEREJEIRA
Excelência! A memória dos povos é estreita. Aos domingos, não haverá problema nenhum. Reavivar-lhes-ei a memória se me recomendares ao Papa. É preciso agir sempre.
SALAZAR
Podeis contar comigo. O Papa concordará e até abençoará a ideia.
(O cortejo pára novamente. Salazar volta a enfiar a cabeça para o povo.)
SALAZAR
(Obedecendo ao frade, mas querendo ser original, acrescenta elementos novos ao discurso.)
Serão criadas escolas para o povo.
FRADE CEREJEIRA
(Puxa Salazar que se desequilibra e cai nos braços de Silva Pais.)
Excelência! Convenhamos a imprudência. Sabei que a burguesia está com os olhos postos em si. Tomai cuidado!
SALAZAR
(Metendo novamente a cabeça na vigia)
Nestas escolas que obedecerão a um plano, os professores colocarão um crucifixo entre as fotografias dos chefes da nação. O padre Cruz (mais tarde canonizado) irá de escola em escola indicar o horário das rezas e ensinará aos mestres o tipo de orações a ser ministrado. (Retira a cabeça)
(Numa outra vigia da nau, Silva Pais faz um sinal para a polícia e esta de imediato carrega na multidão.)
MULTIDÃO
(Aflita)
Que devemos dizer agora?
FRADE CEREJEIRA
(Percebendo a falta cometida no protocolo, enfia a cabeça na vigia e grita para o povo.)
Dizei oremos!
MULTIDÃO
Rezemos, oremos a mais não poder ser. Cada qual com o seu terço vai fazer as delícias de um Portugal novo.
SALAZAR
(Ouvindo as últimas palavras, puxa o frade pelas saias e grita.)
Viva o Estado Novo! (Mais tarde canonizado também.)
MULTIDÃO
Oremos o Estado Novo!
(No momento em que a multidão, já sem ser acossada, dá vivas, infiltra-se nela um homem com uma criança ao colo vindos a correr da Rua da Emenda. Era o Dr. João Soares, ex-ministro da Primeira República.)
CRIANÇA
(Que tem as fraldas molhadas)
Ué! Uééé!
FRADE
(Conseguindo meter a cabeça na vigia de Salazar)
Eu te baptizo de Maria e que nunca te falte o de comer!
PAI DA CRIANÇA
Ele é macho, sua besta!
FRADE
Herege! Duvidas da palavra de Deus?
PAI DA CRIANÇA
(Aproxima o falo da criança à redoma.)
Olha bem como é macho!
(Ambos os confrades de imediato recuam as cabeças espavoridos (nos seminários não se podia olhar o sexo. Dizem até que houve um Papa fêmea. Salazar tinha sido seminarista) com a safadeza do pai da criança. O frade, recuperando o sangue frio, volta a meter a cabeça na vigia.)
FRADE
Excomungado o pai e o filho, em nome do pai, do filho e da pomba também!
SALAZAR
(Falando para Silva Pais)
Não os deixes sem fronteiras!
SILVA PAIS
Às ordens professor! Não seria bom acatarmos as Sagradas Escrituras?
SALAZAR
Estão ultrapassadas. Nada de degolações. Para a ilha de São Tomé é já o suficiente.
FRADE
Pode custar-te caro excelência não tomares as Escrituras à letra. Uma vez excomungados e decapitados isso não seria considerado senão um acto-de-fé. O problema é vosso. Paciência!
(Silva Pais detém a criança e o pai, e leva-os à presença do Estado e da Igreja.)
SILVA PAIS
Ei-los aqui!
(A criança que se encontra nua da cintura para baixo, aproxima-se de Salazar e faz-lhe chichi nas calças.)
PAI DA CRIANÇA
Nesse e no outro! O das saias. Divide bem!
SALAZAR
(Batendo na criança)
Maldito bochechas!
(Continuação do dia 24-sábado)
MARCELO CAETANO
Olha o Marinho! Vieste trazer algum ramo de flores ao senhor ministro?
SALAZAR
Conheces este safado? Irá para São Tomé como penitência do crime que cometeu.
MARCELO CAETANO
É meu aluno. Se fez algum mal, decerto, não voltará a prevaricar. Ele respeita-me.
SALAZAR
(Mostrando as calças mijadas)
Não tem salvação possível! O crime é contra a dignidade e segurança do Estado Novo.
MARCELO CAETANO
Compreendo, é crime abrangido pela Administração Colonial. Não tem remissão. É tão grave como pisar a bandeira. O que é preciso é unir a nação num todo.
SALAZAR
Faça-se a União Nacional! Para além da unidade que nada seja unido.
(A criança e o pai saem algemados sob prisão acompanhados por Silva Pais. Salazar, Caetano e o Frade ficam a sós no camarote. Caetano chama a atenção par o facto de ir ler uma mensagem secreta.)
MARCELO CAETANO
(Lendo a mensagem)
"Criança cheia de cabelos esbranquiçados, que não acredita que Deus fale aos homens, está a encher a cabeça aos alentejanos dizendo que as terras devem pertencer aos camponeses e que os operários devem todos aprender a ler. Parece um doutor da outra lei."
SALAZAR
Tenho de fazer um discurso sobre o "Risco" de haver crianças precoces. Diz ao Silva Pais que entre em contacto com ele através dos processos tradicionais.
MARCELO CAETANO
Para as crianças deste género, devíamos criar uma creche especial por causa da opinião pública internacional.
SALAZAR E O FRADE EM CORO
Faça-se a tal creche em Peniche. Quanto à última questão, crie-se a censura ambulante para os meios de comunicação. Assim, evita-se que qualquer coisa se saiba lá fora.
MARCELO CAETANO
Corre-se o risco de ficarmos isolados e sós no contexto internacional.
SALAZAR
Mas orgulhosamente!
MARCELO CAETANO
É necessário que prestemos mais atenção à nossa mocidade. As crianças de hoje estão a perverterem-se; é só olharmos para a maneira como mal usam a gravata e como fumam. As que não têm vícios estão contra o regime que tanto trabalho deu a confeccionar.
SALAZAR
Que seja criada a Mocidade Portuguesa!
FRADE
A JEC e a JOC para os transviados.
(Arrombam a porta: é o comandante Cabeçadas que fala em voz muito alta.)
COMANDANTE CABEÇADAS
Senhor meu ministro, que faço do povo... que aguarda lá fora?
SALAZAR
Tinha-me esquecido senhor comandante. Pode mandá-lo embora. E como prémio da sua abnegação vou enviar-lhe um decreto fundando as Casas do Povo.
FRADE
Deus nos valha!
COMANDANTE CABEÇADAS
(Fala para Salazar)
Vou comunicar-lhe a Boa Nova.
(Cabeçadas sai e entra Vicente de Freitas de mão dada com o grumete Américo)
VICENTE DE FREITAS
(Para Salazar)
Está lá fora um conselheiro ilhéu que acaba de entrar na nau e lhe deseja prosar. Este aqui, dá bons sinais de ser obediente. (Aponta para Américo futuro Presidente-almirante)
MARCELO CAETANO
(Divertido, dirige-se ao grumete)
Leva a rrastadeira do senhor professor e despeja-a!
GRUMETE AMÉRICO
(Rindo da testa para cima)
Muito contente obedecerei.
(Américo com a arrastadeira na mão tropeça nas saias do frade e suja Marcelo com o conteúdo do criador do Estado Novo.)
SALAZAR
No poupar é que está o ganho.
MARCELO CAETANO
Este cheiro acompanhar-me-á até à morte!
FRADE
Aproveite Abril, o das águas mil.
VICENTE DE FREITAS
Que faço do conselheiro, senhor professor?
SALAZAR
Mande-o entrar, senhor primeiro-ministro (Salazar na altura era apenas o responsável pelas Finanças).
(Saem Vicente de Freitas, Américo e Marcelo. Este último dirige-se ao chuveiro. O conselheiro bate à porta e mandam-no entar.)
CONSELHEIRO
(Tentando beijar a mão do frade que a esconde debaixo das saias.)
FRADE
(De costas para o conselheiro)
Os recasados ficam sem benção.
(O conselheiro já habituado ao ostracismo da Igreja por ter casado segnda vez apenas pelo civil, finge que não ouve e dirige-se a Salazar a quem cumprimenta familiarmente.)
CONSELHEIRO
Professor, meu caro amigo. Represento as lamúrias dos insulanos. Perderam o ágio da moeda fraca e querem contrapartidas. Um movimento organizado levanta-se há anos reclamando mais amor cristão.
FRADE
(Metendo-se na conversa)
De protesto? Como se atrevem? Têm a liberdade religiosa que tanto desejavam. A graça do Senhor tem-nos poupado aos trabalhos porque passámos. Estão livres destes tumultos. Hão-de receber indultos de compensação e bulas para a digestão. E mais não!
CONSELHEIRO
(Voltando o rabo para o frade)
Saiba professor que estão longe de mais para poderem perder o ágio.
SALAZAR
Isso sei eu! Ainda acabam por querer custos de longura. (Volta-se para o frade)
Como os calarei?
FRADE
Adjazendo-os, senhor ministro.
SALAZAR
Isso mesmo. Tornando-os adjacentes!
CONSELHEIRO
Eu sabia que o professor encontraria a solução.
SALAZAR
De hoje em diante a Igreja e o Estado Novo completar-se-ão.
FRADE
O acordo entre as partes fortalecerá a nossa pátria. E para terminar este dia em glória do Senhor, que ninguém mais se possa recasar.
SALAZAR
Ó eminente e espectante prelado. Parti para a Cidade Eterna e levai o acordo das partes.
FRADE
Trarei a Concordata do nosso entendimento.
CONSELHEIRO
(Falando baixo para Caetano que entretanto voltara do chuveiro sem se ter conseguido lavar. Vestira por cima do mau cheiro a farda de comissário da Mocidade Portuguesa)
Será que saem capados dos seminários?
MARCELO
(Para o frade)
Reverendíssimo! Quero confessar-me!
CONSELHEIRO
Bufo!
SALAZAR
Ah! Crie-se a PIDE.
FRADE
Mais confessionários para a Igreja!
(Saem Marcelo e o Conselheiro)
FRADE E SALAZAR
(Abraçados e em coro)
Desnudos de bens materiais governaremos os apedeutas deste Reino do Senhor!
(Duração longa do abraço...)
(Continua amanhã dia 26 de Junho)
(Segunda-feira-26 de Junho)
V
NO REINO DOS APEDEUTOS
(Continuação)
II
ATÉ QUE...
(De madrugada, na Estação de Santa Apolónia, três homens conspiram encostados a uma carruagem.)
SPÍNOLA
Recebi a mensagem. Concordo. Viva o futuro de Portugal!
OTELO
Do Estado Novo ao Novo Estado não posso deixar prolongar a resposta a essa enorme provocação à farda.
Eanes
E não só! Então, e as promoções?
OTELO
(Mostra um mapa de Portugal do Automóvel Clube de Portugal)
Nós seguimos por esta via, e daqui vamos até à Pontinha. (Aponta com o polegar a Ponte Salazar)
SPÍNOLA
Óptimo!
EANES
E se fôssemos à Junqueira?
OTELO
Também pode ser!
SPÍNOLA
Para mim Cascais!
OTELO
No “João Padeiro” seria o ideal. O marisco lá é de grande qualidade.
EANES
(Para Otelo)
Tenho aqui algumas granadas. Dá-as ao Ramos para fazer a segurança ao nosso general.
OTELO
Um pelotão de Caçadores 5 irá levá-las.
SPÍNOLA
(Deixando cair o monóculo)
Eu tenho a minha espada comigo para o que der e vier!
OTELO
Trata-se de uma estratégia?
EANES
(Com a carranca predilecta)
O Paulo de Carvalho não canta?
SPÍNOLA
(Para Eanes)
Seria bom que você fosse tomar conta da RTP já que foi o responsável pela Radiodifusão de Bissau.
EANES
(Perfila-se, esquecendo que não está fardado)
Às vossas ordens, meu general!
SPÍNOLA
(Empunhando a espada)
Adeus, até à madrugada de amanhã!
(Depois da retirada de Spínola, os dois dirigem-se a um reservado higiénico, trancando-se por dentro para continuarem a conspirar.)
EANES
Eu acho estes planos muito bons. Só que não contaste com a oposição do regime que vamos derrubar.
OTELO
Oposição? Ó menino, o próprio Marcelo, o mais perigoso de todos, concordou em ir para o Convento do Carmo aguardar pelo nosso general para lhe entregar já não me lembro o quê...
EANES
E a Guarda Republicana?
OTELO
Fingirá que é destacada para uma operação stop, e só mandará parar civis.
EANES
E a Legião?
OTELO
Roubei-lhe as armas na última instrução.
EANES
E a PIDE?
OTELO
(Engasga-se, mas consegue responder.)
Esse é um problema que deixamos para o povo resolver.
EANES
Boa ideia! Mas acontece que nos esquecemos do mais importante!
OTELO
As refeições?
EANES
Não! Os políticos da oposição!
OTELO
Que diabo é isso?
EANES
Agora, não tenho tempo para explicações. Mais tarde hás-de compreender. Só hoje é que o Melo Antunes me ensinou o que isso era. É muito complicado. Mas temo que não será pêra fácil.
(Separam-se...)
III
(Em Paris, o dr. Mário Soares, que se encontra a assistir a um espectáculo num Café Concerto, é chamado de urgência à porta de entrada, por um português exilado.)
EXILADO
(Tenta abraçar Soares)
Camarada!
SOARES
(Revirando os bolsos)
Os últimos francos deixei-os de gorgeta ao criado.
EXILADO
(Muito excitado)
Camarada! O Marcelo e o Tomáz foram para a ilha da Madeira e estão presos num hotel de cinco estrelas! O povo está com o MFA! O Spínola é o chefe! O estratega que era da Legião já deu uma entrevista na televisão a dizer que gostava muito de ser actor. A PIDE está a queimar papeis à janela. O Álvaro Cunhal foi chamado ao “chaimite” da Cova da Onça! O Zeca Afonso ensina os presos de Caxias a cantar a morena que estava na esquina da vila. Os oportunistas...
SOARES
Calma! Calma camarada. Troca isso por miúdos.
EXILADO
A revolução está na rua! O regime caíu!
SOARES
Vou acabar o meu uísque e ver o espectáculo até ao fim. Amanhã, vamos ver o que se pode fazer. Procura-me ao meio-dia.
IV
(Na varanda do frontespício da Estação de Santa Apolónia, Mário Soares fala a uma ruidosa multidão que o aplaude e que impede que o ouçam.)
SOARES
Vamos construir um Portugal novo. Justiça para os povos subjugados e colonizados pelo regime da opressão, da padralhada, dos bufos, dos legionários, dos fascistas, dos exploradores, do patronato, dos impostos à classe trabalhadora, dos inimigos de Marx, dos caciques abençoados pela Igreja, dos reaccionários, dos contra-revolucionários. Prometo-vos a recuperação económica em menos de três meses, o fim do obscurantismo e a disciplina como alternativa à anarquia. Auguro uma nova era de ouro para todos os portugueses. Sei o que quero, mas não sei para onde vou. Quanto aos portugueses de África, devo dizer que nós socialistas estaremos atentos a todos os actos de injustiça. Serão salvaguardados os haveres de todos os portugueses de África sem excepção. As reformas começarão mal tomemos o poder.
(O senhor Boina Basca e outro de bigode à João Bafo de Onça puxam Soares.)
BOINA (Raúl Rego) e BAFO (Tito de Morais) EM CORO
Convém ter cuidado com a linguagem. Este país ainda ontem à tarde era fidelíssimo à Santa Sé.
SOARES
(Vou reformular)
(Quando Soares volta à varanda, a multidão tinha-se sumido. Partira atrás de um senhor de cabelos brancos. Soares errou durante quarenta dias e quarenta noites pelas avenidas de Lisboa, até que encontrou parte da enorme multidão na Fonte Luminosa que tinha fugido do seu discurso. A outra parte da multidão, a contra-multidão, continuava a perseguir o da alva cabeleira.)
SOARES
(Às cavalitas no Jaime Gama)
Portugal é Ocidente! Portugal é Europa! Portugal é CEE! Acabada a colonização de África, começa o caminho para a Europa.
MULTIDÃO
Europa! Europa! A Sibéria fica fria.
(Os gritos da multidão foram ouvidos ao longe pela contra-multidão que se aproxima.)
CONTRA-MULTIDÃO
(Cantando e avançando ao encontro da multidão)
Reaccionários! Contra-revolucionários! Reaccionários! Reaccionários! Reaccionários!
SOARES
(Que continua encavalitado em Jaime Gama)
Zebróides! Zebróides! Xó! Xó!
MULTIDÃO
Xetá! Xó! Xó!
Xó! Xó! Xeta!
(Amanhã, quinto e último capítulo)

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