Wednesday, June 28, 2006

 

OS ESQUERDISTAS - DIÁLOGO -


OS ESQUERDISTAS”
Dedico este texto de 1986 à memória do advogado e humanista João SILVESTRE Pacheco

( Cidade de Ponta Delgada, Ano da Graça do Senhor Bom Deus de 1969. Palácio do Marquês. Salão interior decorado sobriamente. Nas paredes, duas pinturas: Proudhon e um velho senhor da casa. É de noite, a iluminação faz-se à luz de vela. Acordes harmoniosos do prelúdio ao primeiro acto da Carmen de Bizet ouvem-se ao longe: é o filho mais velho de Dom António ao piano.)

DOM ANTÓNIO
(Abrindo uma garrafa de Moscatel de 1941)
“A propriedade é um roubo” (P.J. Proudhon, in A Santa Família) meus senhores! (Já de copo meio cheio e em frente à pintura do revolucionário) “ A salvação não é uma evasão para o céu como o faz o cristianismo, mas uma realização terrena.” (Paul Nizan, in Os Materialistas da Antiquidade)
SILVESTRE
(Apreciando a cor do vinho no contraste do copo com a luz da vela)
Ah!, casta moscatel.
BARBOSA
Generoso! Muito generoso! (Estala a língua como um escanção)
DOM ANTÓNIO
(Distante, sóbrio e distinto. Quase inglês.)
Aromático e personalizado. Uma relíquia!
(A mulher do marquês entra no salão dançando a chamarrita.)
MARQUESA
Ó António! Ó António! O António Salazar paga-nos as listas!
SILVESTRE
Qual foi a nossa percentagem nas urnas?
MARQUESA
Vinte e dois por cento!
TODOS EM CORO
Bravo! Abaixo o regime dos detritos!
(A vela apaga-se com o sopro dos revolucionários.)
MARQUESA
É o obscurantismo! É a negra noite que continua.
DOM ANTÓNIO
(Chamando a criada inglesa)
Mary! Mary!
(A marquesa toca a campainha de prata que traz à cintura.)
MARY
(Abre a porta e olha o fumo que sai do pavio da vela)
Happy birthday to you, dear Sir...
DOM ANTÓNIO
Luz! Quero luz!
(A criada inglesa manobra o interruptor que volta a abrir o circuito eléctrico iluminando todo o salão.)
SILVESTRE
Festeje-se o bafo popular, que nem só do pão vive o homem, ó marquês!
DOM ANTÓNIO
Mary, ide à cave e trazei-me “Torna Viagem”!
SILVESTRE
Ah, casta histórica!
(Entra um olheiro)
DOM ANTÓNIO
(Para o olheiro)
Que novas trazeis?
OLHEIRO
(Olha para o saco que segura com ambas as mãos fazendo um certo esforço.)
Ouro, meu senhor!
MARQUESA
Ah, as rendas!
DOM ANTÓNIO
(Para a marquesa)
Levai daqui a identidade bestializada do capitalismo! (Aponta para o saco do ouro e olha para o óleo de Proudhon que se despega da parede fazendo um enorme ruído quando atinge o sobrado.)
(Todos se assustam)

BARBOSA E SILVESTRE
(Erguendo os copos)
“Para lisonjear o povo é preciso oprimir os ricos.” (Aristóteles, in Tratado da Política.)
(A marquesa e a criada inglesa saem carregando ambas o saco das rendas)
DOM ANTÓNIO
É com o capital que a classe dominante transforma os produtos em mercadoria. Eu não o permitirei. Arrecadá-lo-ei!
BARBOSA
Claro! Claro! No capitalismo tudo se converte em mercadoria. Fazeis bem! Procedeis com justiça!
OLHEIRO
(Para dom António)
Mas fica o senhor com o ouro?
BARBOSA
Até que está bem. É uma medida que impede a criação de uma nova burguesia.
SILVESTRE
O povo curvado, a terra cavada, o rosto suado...
DOM ANTÓNIO
Os servíveis de hoje serão os senhores de amanhã.
OLHEIRO
E até lá?
DOM ANTÓNIO
Vão consumindo. São consumidores.
OLHEIRO
O povo consumido. Hum!
(Entra a criada inglesa, trazendo várias garrafas do histórico “Torna Viagem”.)
MARY
Dear Sir, your wine please.
TODOS EM CORO
Vivamos a alegria da comunização da propriedade, dos meios de produção e da troca. A sociedade ideal é a comunidade fraternal!
SILVESTRE
Bebamos!
OLHEIRO
(A quem fora distribuído um copo cheio de “Torna Viagem”.)
É chá?
TODOS EM CORO
Abaixo a ordem capitalista!
Abaixo o salazarismo!
Abaixo o clericalismo!
Fim da guerra colonialista!
(Bebem os copos)
OLHEIRO
(Bebido)
O povo é governado pelos senhores?
BARBOSA
Os senhores são a classe dominante.
SILVESTRE
Os ricos são a classe dominante.
DOM ANTÓNIO
“Quand ce sont les riches qui imitent ce gouvernement, nous nommons ce gouvernement lá aristicratie, et, quand ils ne s´inquiètent pas des lois, oligarchie.” (Platão, in Político)
SILVESTRE
É preciso que se retractem. Eu sonho o progresso no amplexo universal do belo ao social.
BARBOSA
“Escarro na beleza e nos seus vãos admiradores, quando ela não produz nenhum prazer.” (Paul Nizan, in Os Materialistas da Antiquidade)
DOM ANTÓNIO
A mais-valia arrecadada é para alguns um prazer.
SILVESTRE
Parasitagem milenária.
OLHEIRO
Conversa fiada.
BARBOSA
O homem adora o ouro mas vive do trigo.
OLHEIRO
Eu o planto, outros o comem.
BARBOSA
São os burgueses e esses até os deuses desafiam.
SILVESTRE
E vencem-nos na velhice.
DOM ANTÓNIO
(Dirige-se ao olheiro mas olha para Barbosa)
E não só. Até as normas e as relações feudais destruíram.
OLHEIRO
Os burgueses são progressistas?
SILVESTRE
E os deuses também!
OLHEIRO
O cemitério dos deuses e dos burgueses é um lugar aprazível. “ Como é possível que a burguesia arraste consigo ideias progressistas se ela tem os operários na conta de bestas de carga?: é preciso que este gado trabalhe, mas não dê coices: é necessário, pois, não só espancá-lo e fuzilá-lo, assim que ele escoiceie, como também domesticá-lo, como fazem certos especialistas nos picadeiros.” (Bukharin, in ABC do Comunismo.)
DOM ANTÓNIO, SILVESTRE E BARBOSA
(Com as mãos sobre o peito)
Os juristas regimentaram as leis revolucionárias.
OLHEIRO
(Que continua a beber grandes quantidades de vinho)
De imposto pago tanto como o marquês e só tenho de meu dois alqueires de terra. Se isso é progresso... que se lixem as leis! Estas só servem os senhores e as suas liberdades.
SILVESTRE
O legislador não dorme. As leis terão de ser sempre revistas.
DOM ANTÓNIO
É por isso que lutamos.
OLHEIRO
Onde?
DOM ANTÓNIO
Nas masmorras, contra a polícia e o exército opressor.
OLHEIRO
Mas vossa senhoria não vê que tudo isso faz parte do folclore da burguesia!
BARBOSA
É a dialéctica! É o processo histórico!
SILVESTRE
São as leis do equilíbrio. São os reguladores hegemónicos da sociedade. São as propostas escatológicas impostas pelos deuses ao homem.
OLHEIRO
Tenho os bolsos rotos. Como o pão que amasso. No Inverno, é à lareira que sucumbo ao frio da noite. No Verão, tenho o suor como refresco. No império dos sentidos, sou escravo das suas permissões.
DOM ANTÓNIO
O equilíbrio não se encontra enchendo os bolsos, mas cosendo-os. É preciso caminhar a igualdade.
SILVESTRE
É preciso assumir a felicidade.
(O olheiro sai. No corredor do palácio encontra-se com duas serviçais que tinam estado a escutar à porta a conversa.)
PRIMEIRA SERVIÇAL
Querias ser igual aos senhores. É muito para ti, beiços de burro.
SEGUNDA SERVIÇAL
Passa a vida a imitar os patrões. Ontem, até fingia estar a ler o jornal.
PRIMEIRA SERVIÇAL
Pudera, o luxo é tanto que a mulher anda calçada a fazer de “madama”.
SEGUNDA SERVIÇAL
Só visto, aqueles pés de cascalho! Se calhar usa meias?
OLHEIRO
(Apalpando o rabo à primeira)
Meias também te dou!
SEGUNDA SERVIÇAL
Maricas!
PRIMEIRA SERVIÇAL
(Rindo muito)
Eguariço de uma figa!
(Fogem ambas, enquanto o olheiro entusiasmado as persegue de mãos nos bolsos.)

Fim do 1º. Capítulo. Continua amanhã dia 29.

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