manuelmelobento

V
(Ano de 1974, mês de Abril. Casa secular. Cidade de Ponta Delgada.)
MENINA
(Para a criada que a acorda trazendo-lhe o pequeno-almoço ao quarto de cama.)
Meu pai, onde está? Hoje, não se despediu de mim.
CRIADA
A bom lavar-se menina. Já são os segundos pares de cuecas que lhe levo esta manhã.
MENINA

(Procurando pelo rádio portátil)
Onde está o meu rádio?
CRIADA
Com o senhor. Não o larga. Deu agora para gostar das marchas dos militares.
MENINA
Minha mãe onde se encontra?
CRIADA
Foi para a missa.
MENINA
Hoje, não é domingo. Teria ido por intenção da alma de alguém?
CRIADA
(Ajeitando o carrapito encanecido)
Por alma do Salazar é que não foi. O senhor nunca a deixaria ir sozinha.
MENINA
Nesta casa, só se pensa na política.
CRIADA
Qual política, menina! O que se tem ouvido desde manhã cedo, nesta casa, é: ai, as minhas ricas pratas!
MENINA
Pois é, tu nunca as limpas como deve ser. Depois não queres que te ralhem.
(Ao longe, uma gaivota voava. Nas ruas o povo cantava.)
VI
(No Palácio da Conceição, Dom António toma posse como governador do distrito de Ponta Delgada. O povo acorre em massa à legalidade revolucionária do acto, invadindo os outrora silenciosos salões. Antigos dignitários locais e muitos ex-bufos do regime deposto rodeiam o marquês.)
DOM ANTÓNIO
(Em cima do banco do contínuo, inicia a leitura do seu discurso.)
Partidário da imaginação, da razão e da liberdade, evoco neste momento a memória de quantos gloriosamente combateram o improgressivo e elitista regime, em boa hora deposto pela clarividência e pundonor de um punhado. Para eles os meus sinceros gritos revolucionários.
EX-PRIMEIRO BUFO NA CLANDESTINIDADE
Viva a revolução! Viva a democracia!
ANTIGOS DIGNITÁRIOS
(Palmeando)
Viva Sua Excelência!
DOM ANTÓNIO
(Continuando)
Nós, progressistas, humanistas e pensadores. Possuidores de blocos de boa memória. Não nos renderemos facilmente no esquecimento do passado recente. Calados os reaccionários, há que granjear o voto popular.
ASSISTÊNCIA
(Gritando descontrolada e histericamente)
Contigo! Contigo!
(Dom António excitado com o calor humano dos agora democratas desequilibra-se e só não se magoa porque um antigo legionário o segura com o corpo. Gesto muito comentado entre a malta. Dom António volta a subir para o banco e é aplaudido entusiasticamente.)
EX-DEPUTADO
(Que tinha estado a beber cerveja no Café Royal)
Viva a liberdade! Fim do Reich da escuridão e dos beatos!
DOM ANTÓNIO
(Retoma o discurso , mas já sem papel)
A “Pesada Herança”... (Os gritos da assistência interrompem-no aos gritos.)
ASSISTÊNCIA
Que se divida! Que se divida!
DOM ANTÓNIO
A “Pesada Herança” que carregámos aos ombros deixará de nos envergonhar. Denunciaremos a ideologia regressiva e a sua aparência e a sua aparência superficial. Não daremos espaço à linguagem dissidente à mudança. A igualdade será o mote da nossa praxis.
EX-PADRE
(Ainda com a fivela de prata nos sapatos)
Acabe-se com os ricos!
COMUNISTA
Papemos-lhes as despensas!
DOM ANTÓNIO
(Procurando ser ouvido grita a plenos pulmões.)
Justiça social para todos!
EX-SEGUNDO SITUACIONISTA
Os rendeiros não me pagaram as rendas! De que viverei? Façam-me justiça!
(O barulho é ensurdecedor. Dom António bem tenta fazer-se ouvir. A assistência está possessa. O ex-padre abraça-se a uma novel esquerdista.)
DOM ANTÓNIO
Arvoremos a bandeira da vitória sobre os escombros do passado.
EX-PADRE
(Que continua agarrado à mulher de um antigo Comandante de Castelo)
Acabe-se com o púlpito, com as procissões, com os arraiais e com o folclore.
COMUNISTA
Que se cale Camões, essa língua rimosa!
DOM ANTÓNIO
(Muito encarnado)
Combaterei a desigualdade até à exaustão...
ASSISTÊNCIA
Queremos emigrar! Temos direito a passaporte!
DOM ANTÓNIO
Somos livres...
EX-PRIMEIRO BUFO NA CLANDESTINIDADE
Pides para a prisão!
SILVESTRE
“Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de
oferecer lembranças.” (António Gedeão in Máquina de Fogo)