Monday, September 25, 2006

 

NA SERVIDÃO DO DESEJO

(Casa térrea de aldeia. Na cozinha, o camponês ceia com a família. Todos estão macambúzios. As raparigas mantêm a cabeça entre as mãos. Ao lado, numa dependência miserável, a sogra, adoentada há anos, toma um caldo requentado.)

JERÓNIMO
(Olhando para o prato de sopa, fala para a mãe.)
Outra vez couves aferventadas. E eu que só tenho obrado água de barrela.
CAMPONÊS
Comes o que te puser no prato ou machuco-te esses ossos!
CAMPONESA
Valha-nos Deus! Não vês que é a soltura que o faz falar assim. (Para o filho) Hoje não há mais nada para comer.
CAMPONÊS
Malandro. Já nem sabes pegar no sacho! (Faz o gesto de quem vai bater no filho. O rapaz desvia-se instintivamente.)
CAMPONESA
O rapaz não tem quinze dias que chegou da tropa e já o queres matar com trabalho!
CAMPONÊS
Este malandro levou-me as últimas patacas. E tudo para quê? Para gastá-las na caserna comendo que nem um patrão, enquanto a gente se matava a trabalhar.
JERÓNIMO
Não tenho culpa de ter nascido!
CAMPONESA
Ai que pecado! Tanto sacrifício a gente fez para te criar e tu, meu ingrato, a falares assim. Até ofendes a Deus Nosso Senhor!
CAMPONÊS
Malvado, um dia ainda te mato!
INOCÊNCIA
(Filha mais velha que chora)
Deus tenha piedade de nós! (Benze-se)
CAMPONESA
(Levanta-se e dirige-se para o fogão e olha para a panela)
Acabou-se. Agora é rezar e deitar. (Para o filho) Tu não vais para a deita sem tomares a mezinha que a Tia Cesaltina te mandou. Não te esqueças de lhe dar um pouco de lume.
CAMPONÊS
Para que te apoquentas com este desgraçado se ele não quer saber da gente?
JERÓNIMO
Meu pai sabe muito bem que na tropa ninguém me dava nada. Nem tinha dinheiro para os cigarros quanto mais para os selos.
CAMPONÊS
(Dirige-se ao filho e começa a bater-lhe.)
Eu dou-te os cigarros, meu canalha! Eu mato-me a trabalhar meu filho de puta!
CAMPONESA
(Interpõe-se entre pai e filho)
Olha que matas o rapaz!
(As raparigas fogem para o quarto da avó, onde dormem, o filho mais novo chora junto ao fogão de lenha. O Camponês corre para ele e bate-lhe na cara. Jerónimo foge.)
Continua amanhã, dia 26.9.06.

Comments: Post a Comment



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?