Friday, September 29, 2006

 

NA SERVIDÃO DO DESEJO

(Continuação atrasada)

INOCÊNCIA
Se era aquilo que os senhores comeram hoje ao almoço, não sei. Que sabor é que terá?
AURORA
Se um dia houver cá por casa um desgosto e calhar haver bifes para o almoço, talvez tenhas sorte...
MATILDE
Só se for um desgraça muito grande. Na morte da mãe da senhora não deixaram de comer tudo que foi para a mesa.
AURORA
Pelos vistos nem a morte traz proveito aos desgraçados.
INOCÊNCIA
Mais vale ter um padrinho na América.
MATILDE
Tive um tio que conseguiu fugir para lá. Dizem que morreu rico. Um dia cheguei a ver uma fotografia dele com um casaco de gola de pele de bicho como a senhora usa e todo empenado junto a um carro que era um mistério de grande.
INOCÊNCIA
Que sorte! Que Deus tenha piedade de nós.
MATILDE
E não nos tire o sono que ainda é nosso!

IV

Sala de estar. Emírcio e Laura recebem pela primeira vez fora do seu circulo. Os convidados são os Souza a quem a fortuna diminui a olhos vistos mas que se relacionam com a alta burguesia local por laços de sangue. Antes de se dirigirem para a mesa de jantar, Emírcio serve uma bebida do tempo da sogra e que ele utiliza pela primeira vez como aperitivo. A senhora Souza (Márcia) depois de a beber fica congestionada.

EMÍRCIO
(Senta-se à mesa e dirige-se aos convidados.)
É sentar, é sentar. A dona Márcia está muito corada. Sente-se bem?
SOUZA
Deve ter sido do aperitivo. (Carrega na última palavra)
LAURA
Se calhar bebeu-o para não fazer uma desfeita.
SOUZA
Nós costumámos apreciar muito o Madeira seco. Faz hoje uma semana que em casa do Zezinho Albuquerque bebemos um de estalo. (Para a mulher) E não te fez mal. (Faz um sorriso amarelo)
LAURA
Madeira seco, senhor Souza?
SOUZA
É um bom aperitivo. (Olha de soslaio para Márcia)
LAURA E EMÍRCIO
Ah!
EMÍRCIO
Para a próxima não servirei mais aquela bebida de minha sogra.
SOUZA
Sabe doutor, o Martini seco é muito suave e cai sempre bem como aperitivo antes das refeições.
EMÍRCIO
Seco e então o doce?
SOUZA
O doce tira o apetite. (Ri-se para a mulher)
MÁRCIA
(Arregala os olhos para Souza)
Toni, já me sinto melhor!
LAURA
(Quase a gritar)
Rapariga, traz a sopa! Nunca me lembro do nome dela.
Inocência entra na sala vestida com a farda da criada mais velha e começa por servir Emírcio.
EMÍRCIO
(Enchendo muito o prato)
Serve a sopa à senhora de Souza.

Inocência não percebe e dirige-se a Souza. Ao tentar colocar a terrina no lado direito deste engata a manga da farda nas costas da cadeira e ao procurar equilibrar a terrina faz com que a sopa se derrame sobre Laura sujando-lhe o vestido e parte do pescoço.

LAURA
(De pé e a gritar)
Ai o meu rico vestido! O meu vestido novo! Sua porca de merda!
MÁRCIA
(Levantando-se e fazendo um esforço enorme para não rir.)
Minha querida, vamos! Vou ajudá-la a mudar de roupa!
SOUZA
(Contendo o riso, fala com dificuldade.)
Já passa, já passa! Foi apenas um caldo derramado. (Voltando-se para Emírcio) Há tempos em casa da Mia Sotto aconteceu o mesmo. Foi uma risada geral. Quem mais se riu foi o almirante Rodrigues que é cunhado do sogro dela. Começou logo a imitar uma refeição a bordo de um barco fustigado por uma tempestade. A própria vítima também se divertiu muito.

Emírcio que tinha agarrado a colher com muita força começou a descontrair. Inocência parece uma estátua. Emírcio desculpando-se pede a Souza para esperar um pouco e diz a Inocência para o seguir. Souza fica sozinho e passa o olhar pela sala de jantar fixando-se numa cópia de um retrato de Pio IX. Emírcio ao passar pela cozinha ordena às outras duas criadas para o seguirem até à falsa.
Continua

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