Sunday, October 01, 2006

 

NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação

EMÍRCIO
Sabe, o Manuel da mercearia aqui do canto, onde me sirvo, é quem me escolhe o vinho que bebo. Em casa de meu pai havia muita austeridade e vinho foi coisa que nunca lá entrou. Bebi vinho pela primeira vez em Coimbra e daí para cá afeiçoei-me ao gosto. Mas sempre na medida exacta. A dignidade da minha profissão assim o exige.
SOUZA
O doutor pode acreditar que no mês passado, em casa do Castro Peralta, bebi um vinho de estalo e que tinha um óptimo “bouquet”. Era da região de Sintra. Já cá não está o Eça para o confirmar. Muito dotado e com excelente acidez.
EMÍRCIO
A primeira coisa que farei amanhã é perguntar ao meu merceeiro se este vinho é de Sintra. Só sei que é avulso.

Márcia e Laura regressam à sala de jantar e sentam-se à mesa. Souza levanta-se.

EMÍRCIO
(Para Souza)
Precisa ir a algum lado?
SOUZA
(Sentando-se)
Não, obrigado!
MÁRCIA
Bem, já está tudo mais calmo. Façamos de conta que nada se passou. (Para Laura) Este vestido fica-lhe muito bem. Toni, que lindos vestidos tem a Laura. Que variedade. Até fiquei com inveja.
LAURA
Não diga isso, que fico sem jeito.
EMÍRCIO
Vês, e tu estás sempre a queixar-te que nunca tens nada para usar. Os tempos estão maus e temos de poupar. Olha para o exemplo das inglesas que até para comerem um bife têm de ir para a fila. E há inglesas muito finas.
LAURA
Eu não sou inglesa! Fui muito bem educada. Nunca iria para uma fila. As criadas servem para alguma coisa, não acha Márcia?
MÁRCIA
Claro, minha querida. A uma senhora da sua posição não ficava bem.
LAURA
(Para Emírcio)
Vês, a posição social é coisa muito importante.
SOUZA
Uma prima dos Windsor foi fotografada em Londres numa enorme fila.
LAURA
Quem são os Windsor?
EMÍRCIO
Ingleses que têm mordomo.
SOUZA
Acho que está na altura de arranjar um.
EMÍRCIO
Eu sei vestir-me sozinho.
MÁRCIA
É muito snobismo. Perde-se a intimidade.
SOUZA
Estava a brincar. Nós, os portugueses, não somos assim tão exigentes.
EMÍRCIO
Vamos comer!

Matilde volta a servir a sopa. Márcia ainda tenta manter a conversa, mas sem sucesso. Pois tanto Laura quanto Emírcio estão como é seu hábito a comer calados.

LAURA
(Estendendo o prato a Matilde)
Matilde, já podes trazer a galinha rosada. (Para Emírcio) Lá temos de arranjar outra criada.

Matilde dirige-se para a cozinha.

EMÍRCIO
Deixa isso a meu cargo. Amanhã trato disso. Criadas é o que não falta.
LAURA
Ainda bem que temos cá a Matilde. É muito velha cá em casa e é-nos muito afeiçoada. Por gratidão pelo que lhe fizemos recusa-se a receber qualquer salário, pois já não faz o serviço como deve ser. É um peso morto.
EMÍRCIO
Não lhe pagamos, mas damos-lhe tudo: as roupas e os sapatos que Laura já não usa e tantas outras coisas. E sobretudo a comida. Tudo isto custa um dinheirão!
LAURA
Já não há gente assim! Agora é o que se vê. E ainda querem que lhes paguem os maus serviços.
EMÍRCIO
Gentinha horrorosa!
SOUZA
Já tivemos uma assim, mas coitadinha lá morreu de velhice. Foi cá um desgosto. Faz muita falta. Estava muito habituado a ela.
LAURA
Levam-nos anos de vida com o desmazelo e ingratidões.
MÁRCIA
(Para Laura)
É que ele foi criado com ela. Sentiu-lhe a falta.
LAURA
Matilde também está muito velha. O problema maior será se adoecer antes de morrer. Já não tem família.

Continua

Comments: Post a Comment



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?