Monday, October 02, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
EMÍRCIO
É bastante rija. Velha mas com saúde. No entanto, já falei ao Inácio do asilo para qualquer eventualidade que nos apanhe desprevenidos . (Para Laura) Ele disse-me para não me preocupar pois havia de arranjar lugar apesar de estarem cheios. Bastará uma palavrinha apenas.
SOUZA
O doutor está muito por dentro de tudo. Influência é só para quem pode!
EMÍRCIO
Nem sempre é fácil dizerem-me que não.
MÁRCIA
Era preciso ter muito descaramento!
LAURA
E quanto é que isso vai custar?
EMÍRCIO
Ora, ora! Aquela gente sabe até onde posso chegar...
SOUZA
Já consta doutor, já consta. Há muito pouca gente qualificada por aí. E mete-se pelos olhos dentro o modo como o seu nome circula em certos meios.
EMÍRCIO
Tenho feito os possíveis.
LAURA
Espero que não seja muito difícil substituí-la.
EMÍRCIO
Tudo se há-de arranjar conforme as nossas exigências. Criadas não hão-de faltar e por muitos anos.
LAURA
Deus te ouça!
(Matilde regressa da cozinha com a galinha.)
MATILDE
A galinha, senhor doutor.
LAURA
Serve o senhor Souza!
SOUZA
Por favor, por mim não!
(Márcia sorri disfarçadamente para Souza)
LAURA
Por quem é senhor Souza! Meu pai era sempre o primeiro a servir-se. Tínhamos, eu e minha mãe, muito respeito.
EMÍRCIO
Vamos lá, que a comidinha arrefece. (Para Matilde) Despacha-te! (É servido em terceiro lugar e começa logo a comer. (De boca cheia interpela Souza) Que tal? É a minha comida preferida. (Para Márcia) Quer a receita, minha senhora?
LAURA
Minha mãe ensinou-a à criada. E não é que ela acerta sempre. Claro que tenho de dar sempre um toque final.
SOUZA
Sem ele é que não há a tal distinção que nos faz apreciar o requinte.
(Márcia quase que se engasga. Por debaixo da mesa dá um toque com o pé no marido.)
EMÍRCIO
Divina!
MÁRCIA
Tudo tem o seu segredo.
LAURA
A batata antes de ir para o forno já vai meia cozida.
SOUZA
Logo vi! A base da família é a fada do lar. A mãe sábia que aconselha os filhos e que sob a supervisão do chefe de família dirige a casa que é o nosso templo sagrado e o sustentáculo da nação.
(Uns segundos de silêncio varrem a sala de jantar. Laura é estéril.)
EMÍRCIO
(Apercebe-se que Laura tem o lagrimito no canto do olho.)
Uma criada bem treinada é como um cavalo de corrida.
MÁRCIA
(Dando conta da situação)
Em Londres, quando estivemos em Ascott, vimos cavalos maravilhosos.
SOUZA
E que bem que saltavam.
MÁRCIA
Os lordes ingleses com aqueles chapéus altos até pareciam que iam para algum casamento.
EMÍRCIO
O governador civil quando vai na procissão do Senhor também o usa, mas segura-o na mão.
MÁRCIA
É por respeito. Os ingleses não destapam a cabeça para irem ver as corridas de cavalo.
LAURA
Vamos passar à sala de estar para tomarmos o café.
EMÍRCIO
(Espevitando os dentes com um palito de dentes que tira da carteira.)
Laura forrou os sofás com um esplêndido veludo. Vamos, minhas senhoras, vamos!
Continua