Sunday, October 15, 2006

 

NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação

Noite. Emírcio e Laura estão deitados na cama. Emírcio reza e ela imita-o. Vendo que ele prolonga a oração, toca-lhe com o pé.

LAURA
Mas que reza!
EMÍRCIO
Dói-me a cabeça. (Fecha os olhos e leva o crucifixo aos lábios.) Se fosse escultor só moldava pés e coxas. (Baixinho) Querida!
LAURA
(Satisfeita)
Com que então, dois números acima! (Bafeja-lhe o pescoço)
EMÍRCIO
As minhas palavras não são a roupagem do meu sentir e nesta vida de ícones quem não liberta os juramentos, prisioneiro fica da sua condição infortunada quando o ritual da cobardia espartilha a felicidade e nos condena a importar outras imagens. Imagens que afinal sempre estiveram dentro de nós como modelos de perenidade.
LAURA
Querido! (Procura colar a boca à de Emírcio)
EMÍRCIO
(Desvia os lábios e finge beijar-lhe o pescoço.)
Está escrito. Para além da oração tudo será sacrifício.
LAURA
Discursos a esta hora da noite? Será da posição?
EMÍRCIO
Invejo os amantes jacentes a quem o Mondego presta eterna homenagem. Invejo Romeu Montésquio, Píramo ... até invejo Dom Sebastião.
LAURA
Porquê, se ele não voltou?

XV

Manhã cedo. Emírcio toma o pequeno-almoço na sala de jantar, sendo servido por Inocência.

INOCÊNCIA
(Segurando a cafeteira)
O senhor doutor toma mais café?
EMÍRCIO
(Retirando da carteira uma nota de vinte escudos)
Toma, é para ti! Podes comprar o que te apetecer, mas não digas a ninguém que tos dei.
INOCÊNCIA
O senhor doutor a tanto não é obrigado. Já tive dinheiro, vestido e sapatos.
EMÍRCIO
Toma! Toma! Hás-de receber ainda mais.

(Inocência arruma a nota na algibeira do avental. Emírcio olha para a cintura da rapariga e coloca as mãos em jeito de ritual litúrgico. Inocência sai.)
Continua

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