Tuesday, October 10, 2006

 

NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação

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Emírcio desce as escadas do sótão. Uma nova sensação de prazer começa a tomar forma na sua mente.

EMÍRCIO
(Falando sozinho)
Isto passa-me! Isto passa-me!

(Uma voz vem ao seu encontro. Ela é-lhe bem conhecida.)

VOZ
O que construíste à volta do teu casulo não suporta o desafio de novas sensações. Estás recheado de etiquetas e não terás forças para mudar.
EMÍRCIO
Isto já me passa! Os desafios fazem parte do meu dia-a-dia. Reajustá-los-ei sempre que for preciso. É uma questão de inteligência.
VOZ
Desmorona-se a fachada e é apenas mais um moralista que vai para o ar.
EMÍRCIO
Se calhar tens as mãos limpas? Se as esmolas falassem!
VOZ
Foi com elas que te paguei o curso!
EMÍRCIO
Eu é que sei o que passei! Sempre com faltas de dinheiro para tudo, até para comer.
VOZ
E julgas que as esmolas davam para mais? Era tudo a dividir!
EMÍRCIO
E porquê? Não eras tu o único necessitado?
VOZ
É fácil falar assim! Do mesmo outros comiam.
EMÍRCIO
Quem reparte os despojos são os vencedores e estes sobrevivem sempre com o que se apropriam.
VOZ
O que consegui dei-to. Fui um dos que repartiu os despojos. Um vencedor que não sobreviveu.
EMÍRCIO
Estás arrependido?
VOZ
Eras do meu sangue!
EMÍRCIO
Amaste-me?
VOZ
Como diziam que devia ser.
EMÍRCIO
Não é o que te estou a perguntar...
VOZ
Em tudo fui avaro, mas contigo tudo dividi. E para quê, se morri como um cão?
EMÍRCIO
No fim, não te faltou nada!
VOZ
No asilo.
EMÍRCIO
Acompanhei-te sempre que pude. Tinha a minha vida para viver. Tenho uma mulher a quem me dedicar.
VOZ
Dedicaste-te ao dote e à sogra. Trocaste-me por jarrões de sala.
EMÍRCIO
A que Senhor servir, meu Deus!
VOZ
Interesseiro! Que cópia me saíste!
EMÍRCIO
Cá dentro (Coloca a mão sobre o peito) ainda tenho interior. E se uma nova sensação buliu comigo, não sou melhor que Páris. Os impérios e os corpos valem o que se aguentarem.
VOZ
Puf! Transporta isso que dizes para a vida.
EMÍRCIO
Dá tempo ao tempo!
VOZ
Casaste com uma casa-forte e agora despertas tarde para novos compromissos. Nada mais te resta do que a obsessão. Reunirás as diferenças entre o real e o aparente que te hão-de destruir. Para mensageiro das tuas futuras desgraças nem a tolerância escarnenta e balofa das velhas prostitutas terás.

(Laura, uma gordura repousada, saída à pressa da cama, espera Emírcio agarrada ao corrimão da escada.)

LAURA
Que cara é essa, Emírcio?
Continua

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