Wednesday, October 18, 2006

 

NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação

XVI

Na repartição. O funcionário Fortunato entrega a Emírcio papelada para despachar. Emírcio está sentado a uma secretária atafulhada de papéis.

FORTUNATO
Senhor doutor, eis os ofícios para assinar.
EMÍRCIO
Que é feito da Dona Vicência?
FORTUNATO
O senhor doutor não se lembra? É que ela foi ao médico com a filha. Fez-lhe o pedido ontem!
EMÍRCIO
Hoje é para ir ao médico. Amanhã é para ir à missa por alma e por aí adiante. Metem-nas cá e depois nós é que as aturamos. Isto mais parece uma instituição de caridade com prioridade para as domésticas e viúvas.
FORTUNATO
A primeira que para cá veio foi a protegida do nosso falecido conservador. O senhor ainda era muito novinho. Quem a conhecia bem era meu pai. Uma mulher com um busto de respeito, com perdão da palavra. Deseja mais alguma coisa, senhor doutor?
EMÍRCIO
Não, por agora. Depois chamo-o.
FORTUNATO
Com certeza, senhor doutor.

Emírcio retira da gaveta da secretária um pequeno espelho e mira-se. Está pensativo.

VOZ
Faz o mesmo, mete-a na conservatória. Ah! Ah! Ah!
EMÍRCIO
Ela é meio analfabeta. E nem eu tenho tanto descaramento! Aos antigos tudo era permitido. Até lhes ficava bem...
VOZ
Bem! A mim puseram-me na roda. Serviu-me de muito o orgulho dos velhos machos. Toda a vida vivi escondido de mim mesmo. Metade de mim nunca foi nada. Nunca estive na rua...
EMÍRCIO
Só o Sabujo deste a conhecer!
VOZ
Para chegar até onde cheguei, teve de ser.
EMÍRCIO
Grande coisa!
VOZ
Achas pouco! De filho da roda cheguei a pai de doutor.
EMÍRCIO
A cada um a sua grandeza desconhecida.
VOZ
Pois, fica sabendo que paguei as afrontas ao preço do silêncio. O meu sim era o sim dos poderosos. Porém, houve dias em que me soube ser quem era. Mesmo que isso não tenha explicação.
EMÍRCIO
E a minha mãe, que parte lhe coube?
VOZ
Diz antes, a mim o que me coube? Vivi uma mentira piedosa. Tomei-a de um casal estéril e muito pobre.
EMÍRCIO
Que belo aparelhamento! Afinal quem sou?
VOZ
Meu filho!
EMÍRCIO
Isso não significa nada!
VOZ
Dá espaço ao desdém, meu companheiro de berço. Tu tiveste-me!
EMÍRCIO
E durante muito tempo a repulsa dos outros.
Continua

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