Sunday, November 19, 2006

 
DOMINGO, 19.11.06

NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação

EMÍRCIO
Ouvi ruídos. (Respira fundo) Levantei-me, ainda estavas a dormir profundamente. Depois fui averiguar. De repente, um grande estrondo se fez ouvir. Apanhei cá um susto de morte. Qualquer coisa caíu lá em cima. Parece-me que foi no quarto das criadas. Vou vestir o pijama e pôr as pantufas...
LAURA
Mas, olha para ti! Estás com os pés no chão. Ainda apanhas alguma.
EMÍRCIO
Vou ver o que se passa.

Emírcio volta a subir as escadas e entra no quarto das criadas.

EMÍRCIO
(Para Inocência)
Que é que houve aqui?
INOCÊNCIA
Ai que desgraça!
AURORA
Anda aqui mão maligna!
EMÍRCIO
Toca a limpar isto tudo e bico calado antes que eu me irrite deveras.

Emírcio recolhe o cordel e retira-se.

XXV

(Depois de tudo voltar à calma, Aurora está de pé e coloca as mãos nas ancas.)

AURORA
Estafermo! Grande puta! Queres dar cabo da tua vida pondo-te debaixo daquele porco. Que queres tu fazer com o americano que quer casar contigo? Maldita vida a minha que nunca tive qualquer sorte na vida. Marçanos e magalas bêbedos foi tudo o que me coube!
INOCÊNCIA
Deus tenha piedade de mim.
AURORA
Delambida! Ingrata! Aquele nojento mandou-te para o hospital! Tenho vontade de te esganar.
INOCÊNCIA
Não tive tempo para sonhar. A mim só me coube a fome, a pancada e o trabalho. E toda a gente à minha volta a dizer-me que era assim que ganhava o Céu.
AURORA
E que outro fim julgas que gente como nós tem como prémio?
INOCÊNCIA
Mas é tão pouco o que me cabe!
AURORA
Tu não és nada! Só tens deveres a cumprir. Só tens direito a uma coisa!
INOCÊNCIA
Qual?
AURORA
O sofrimento!
INOCÊNCIA
A juventude e a esperança também são sofrimento?
AURORA
Saíste-me uma grande vaca! Esqueces que do lugar de onde a gente vem, até os porcos, a quem lhes é oferecido curral, acabam por ter mais direito à vida, no tempo da engorda?
INOCÊNCIA
A senhora Aurora, que vem das profundezas da servidão e que todas as noites pragueja contra os patrões com a boca tapada pelos cobertores, só pede castigo em vez de recompensa para si e para os iguais a si. Já parece a senhora Matilde.
AURORA
O que tu tens nessa cabeça!
INOCÊNCIA
Eu só queria ver as estrelas que dão tudo e não pedem nada em troca.

XXVI

(Emírcio, na casa de banho, mira-se ao espelho.)

EMÍRCIO
Mortal! (Sorri) Os deuses, esses grandes apaixonados, também sofreram de paixão. Apolo perdeu Dafne, porque esteve perdido de amores.
VOZ
Os deuses, amando, fizeram história. Vê se aprendes com eles antes que morras como homem.
Continua
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