Saturday, November 25, 2006

 
NA SERVIDÃO DO DESEJO

XXVIII

De manhã, Laura está no seu quarto. Emírcio, depois de ter tomado o pequeno-almoço, servido por Inocência, na sala de jantar, puxa de um cigarro.

EMÍRCIO
Não há lume nesta casa?

Inocência vai à cozinha e traz-lhe fósforos.

EMÍRCIO
Acende esse fósforo!

Inocência aproxima-se de Emírcio e faz o gesto de quem vai riscar um fósforo.

EMÍRCIO
(Pegando-lhe na mão)
Gostaste de ontem à noite?
INOCÊNCIA
É sempre bom... De cada vez é uma despedida e um susto. O que é bom não dura sempre.
EMÍRCIO
E se não casasses com esse tal americano?
INOCÊNCIA
Minha mãe matava-me!
EMÍRCIO
Ainda és muito nova para te casares. Podias fazer render o peixe por mais uns tempos.
INOCÊNCIA
Mas como?
EMÍRCIO
Dizes a tua mãe que queres casar mas que seria bom esperar mais uns tempos para aprenderes a cozinhar e vires a ser uma boa dona de casa.
INOCÊNCIA
Na América isso não é preciso. Até já me disseram que arranjar trabalho numa fábrica é logo a seguir ao dia em que lá se põe os pés. Depois, ganha-se muito dinheiro. E ele faz muita falta a meus pais.
EMÍRCIO
Que falta me vais fazer. Logo agora que me estou a habituar a ti. Vais encher-te de filhos e sei lá que mais. Aquela gente não sabe o que é gostar de verdade.
INOCÊNCIA
A gente habitua-se. Gente pobre é assim. Isto aqui em casa não vai durar muito. A dona Laura se descobre estou perdida. A senhora Aurora já nem me fala. Tenho medo que ela dê à língua. Eu sei como ela é!
EMÍRCIO
Nesta casa, quem manda sou eu! Basta estalar um dedo e substituo-a de um dia para o outro. Há fome e miséria por essas freguesias fora. Ela sabe o que é fome e da negra. Sejamos discretos. Ainda ontem lhe disse que tivesse muito tento na língua. Ela quase chorou. Calada é o seu dever. Eu sou o doutor Emírcio Pacheco. Chega-te aqui!

Inocência aproxima-se de Emírcio que a beija na boca. Emírcio despede-se de Inocência e sai.
Continua
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