Wednesday, July 04, 2007

 


ACHO-TE UMA GRAÇA - I



Quando em miúdo entrava na antiga secretaria notarial de Ponta Delgada para tratar de assuntos familiares a mando de meu pai, encontrava sempre num banco corrido, encostado à parede de uma sala de espera, uma dúzia de mulheres de grandes saias, de lenço na cabeça e cobertas com um xaile preto. Quando, com a minha curiosidade infantil, quis saber o que elas ali faziam, responderam-me que tinham vindo de fora da cidade para reconhecer assinaturas. Sentavam-se na parte da manhã e quando não se conseguiam despachar não tinham outro remédio senão voltar à tarde para mais uma longa espera. Quando a secretaria fechava para a hora do almoço elas iam para a rua e aproveitavam esse intervalo para meterem uma bucha trazida de casa e em pequenas cestas. Como elas tinham necessidades fisiológicas, tanto quanto as senhoras da cidade, era-lhes difícil “arranjarem-se” a não ser nos urinóis do Campo de São Francisco que ficavam muito longe do local onde se encontravam. Muitas delas, perdidas na geografia da “grande cidade” aliviavam-se no Largo de Santo André, paredes meias com o Museu Carlos Machado, que ao tempo era de terra batida e ficava muito mais à mão. Cheguei a ver as “velhas” da janela da casa de meus pais a urinarem de pé. Faziam das saias uma espécie de biombo e numa imitação muito tosca da rica ginástica sueca lá se aliviavam. No Verão, o cheiro que exalavam à tarde na sala perdida do notário era parecido com aquele ar pestilento que rodeava o urinol do Campo de São Francisco – Praça da República de seu nome oficial. Quando o chefe da secretaria estava mal disposto – o que era usual – as pobres mulheres lá tinha de voltar novamente para o banco corrido no dia seguinte… Esse mesmo chefe, um dia, mandou tirar o chapéu a um senhor da alta que se esquecera de se descobrir ao entrar na repartição pública. Se não estou em erro, ao fundo e pespegados na parede estavam os dois pilares do Estado Novo: Salazar e Carmona. Não se podia fazer barulho, no entanto podia-se fumar. As mulheres não fumavam está claro. Naquele tempo as mulheres de fora da cidade quando adoeciam baixavam à cama e morriam moribundas. No entanto, em termos de saúde dos maridos, que eram o ganha-pão da família – sempre numerosa – elas tornavam-se as suas intérpretes junto dos médicos. “Senhor doutor, ele sofre de dores no estômago e às vezes lança sangue pela boca.” Estava certo, pois quem melhor do que elas que lhes faziam a comida, lhes lavavam os pés nos dias de festa, dormiam com eles e deles levavam porrada da praxe depois de alcoolizados aos sábados à noite, saberiam explicar o que eles padeciam ao clínico geral que atacava todo o tipo de doença. E quando era preciso usar a faca em qualquer parte do corpo lá estava o treinado médico - nos corpos dos vivos e na falta de especialidades e hospitais em condições - sempre pronto a curar. Os médicos de antigamente eram verdadeiros heróis. Alguns davam muita fé às senhoras da cidade que a eles recorriam. Até chegarem os primeiros cirurgiões especialistas a coisa tinha muito de ajuda religiosa. Os médicos – que eram muito poucos – enriqueciam rapidamente. O povo quando não tinha dinheiro para os pagar entregava-lhes ovos e galinhas. Médicos mais cultos não se sujavam com gemas e claras. Preferiam ficar com candeeiros antigos e uma ou outra cómoda feita à mão que encontravam nas humildes habitações. As mulheres, como por milagre e apesar de porem muitas crias ao mundo, viviam muito mais tempo. Era, naturalmente, devido à “ginástica” quotidiana. Não se encontra outra explicação. Não passava pela cabeça de ninguém pensar-se na exploração que todos faziam às mulheres. O Estado, os maridos, os patrões e os filhos estavam à cabeça da chulice universal a que estavam sujeitas. Muitas foram enterradas como verdadeiras fadas. O Estado Novo e a Padralhada cognominaram-nas de Fadas do Lar. O certo é que nunca vi uma única estátua a relembrar as antigas Fadas do Lar. É tempo de se fazer justiça a essas vítimas do passado recente. Avenida Fada do Lar, Largo da Fada do Lar, ao menos isso. Bem, vou terminar este texto pois ainda tenho de fazer o jantar, lavar a loiça e passar a roupa a ferro. A vida está difícil.
(continua)
manuelmelobento


Comments:
Este texto, para além de verdadeiro, é uma maravilha!
Bravo.
Abraço-Sá Couto
 
A tua graça não é de agora, é de sempre só que é pena fazeres concorrência à Graça. A concorrência desleal é uma desgraça e a graça não gosta. Tenho dito.
 
Isto não me parece outra coisa que não seja um blog filosófico ou pelo menos um blogue de filósofos. De momento já são três... venham mais cinco. abraço
 
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