Tuesday, October 31, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
INOCÊNCIA
Pudera! Minha mãe cá pela cidade. Vê-se pela sua cara que não deve ser coisa grave. Tem um brilho nos olhos apesar de tanta miséria. Mas diga ao que vem!
CAMPONESA
Tu muito adivinhas. Sabes, a tia Júlia do Pinhal...
INOCÊNCIA
A Preta?
CAMPONESA
Sim, essa mesmo. Veio falar-me de um certo compadre dela que te conhecia, lá muito para trás, está-se mesmo a ver e que era muito amigo de um rapaz. Bem, já está um homem de muito respeito. Um americano, vê lá tu. Ah, querida, teu pai ainda não sabe de nada. Vim à cidade enquanto teu pai foi fazer a terra do senhor Laureano. Até vim de “chófer”, que não há tempo a perder. O homem tem boas intenções. Tem pressa no arranjo. Tem muito entusiasmo mesmo sem te ter visto. Filha minha, é a nossa sorte. Deus permita! Um genro americano era tudo o que eu queria para nos ajudar a sair desta miséria de vida. Tua avó já sabe. A princípio chorou, mas depois disse que era o Céu que te esperava. Que tu merecias melhor sorte.
INOCÊNCIA
Eu não conheço o homem!
CAMPONESA
E isso que importa! Tu podes vir a ser uma senhora igual às outras. Que alegria nos davas. Calávamos de uma vez por todas as bocas da inveja e da rabuja.
Continua
Monday, October 30, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
PRIMEIRO FIEL
Ó compadre, pois a pequena do Carroça não lhe fica atrás. Tem cá um quadril de se lhe tirar o chapéu. E sabe que mais?
SEGUNDO FIEL
O que é compadre?
PRIMEIRO FIEL
Ela é mulher livre e bastante trabalhadeira.
SEGUNDO FIEL
E como é que vai ser?
PRIMEIRO FIEL
Fala-se à Júlia Preta que ela encarrega-se do trato.
XXI
A mulher do Carroça vem à cidade falar à filha. Traz no farnel a vasilha da ilusão. São dez horas, estão ambas no saguão.
CAMPONESA
Teu pai envia-te a benção. Tua avó está cada vez mais enfiadinha e cheia de saudades. Teus irmãos, a gente a ver se os aguenta. Pois o nosso Jerónimo está com ideias de embarcadiço. Teu pai não o atende porque julga que ele nunca mais vai ajudar a gente. É briga feia todo o santo dia. As tuas irmãs não há maneira de as pôr ao serviço. Está tudo tão mau para a gente.
INOCÊNCIA
A pensar assim, nada mudou. Era o que estava guardado para pessoas como a gente.
CAMPONESA
Pois! Teu pai trabalha quando Deus quer e a fominha, às vezes, aperta. Se não fosse o teu dinheirinho, daquela vez, ainda tinha sido pior. Tua avó sem mezinhas. Eu perdi os meus dentes tão cedo. Também, de pouco me haviam de servir.
INOCÊNCIA
E não há maneira de fugir a esta infelicidade. Santo Deus!
CAMPONESA
O haver há. E venho por isso filha. Trago-te boas notícias. O assunto é sério.
Continua.
Sunday, October 29, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
XX
A Procissão do Santo Cristo está na rua. Centenas de crentes integram-se nela e centenas vêem-na passar de pé e em cima dos passeios, enquanto outros colocaram nas varandas e janelas de suas casas as colchas mais coloridas e de cotovelos nelas assentes observam pousadamente o lento cortejo.
PRIMEIRO FIEL
(Ao ver passar a Imagem Milagrosa)
Eu amo-Vos Senhor mais carinhosamente que à respiração e às carícias maternais. Amo-Vos muito mais do que este sentir-me vivo. Meu Pai do Céu, esse Teu arzinho tão triste que o Teu rosto revela ao longo dos anos são pecados nossos ou aborrece-te a adoração dos quantiosos que te carregam?
SEGUNDO FIEL
Dava por mim em sonhos levando nos ombros o Senhor, mas ilustres e soberanos costumes impedem-me de o realizar.
PRIMEIRO FIEL
Existe no mundo tanta coisa esquisita. O Senhor ordenou o mundo à Sua maneira. Nós carregamos o peso da enxada para podermos viver e para que tenham o pão os senhores. Os senhores louvam muito a glória de Deus que os torna, por isso, Seus filhos dilectos e muito protegidos.
SEBUNDO FIEL
É bem mais leve a parte que lhes cabe. Que sobrará, na outra vida para nós?
PRIMEIRO FIEL
O que é preciso é aproveitar esta!
SEGUNDO FIEL
Como é isso possível, se ela é tão apressada nos prazeres?
PRIMEIRO FIEL
Mas até ao trânsito sempre vai um bom bocado.
(Passam as mulheres que todos os anos fazem promessas vestidas de negro. Carregam enormes velas tão pesadas e tão grossas o que lhes dá um ar cansado. As que nada carregam têm um ar mais gaiteiro.)
SEGUNDO FIEL
Ó compadre, e é que amanhã já é segunda-feira e não amanho uma filha de Deus a meu jeito para levar comigo para a América!
PRIMEIRO FIEL
Isso é o que há de mais fácil. Fosse eu solteiro e havia o compadre de ver quem levava eu para lá.
SEGUNDO FIEL
E quem era?
PRIMEIRO FIEL
A pequena do João Carroça. É nova e é um grande pedaço de mulher. Ainda ontem a vi na Mudança da Imagem. O compadre alembra-se da minha Cheirosa que vendi antes de partir?
SEGUNDO FIEL
Se m´alembro! Era a sua rica mula.
Continua
Saturday, October 28, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
INOCÊNCIA
(Arquejante)
Aquilo foi coisa que já passou.
EMÍRCIO
Perdi a cabeça! Não fiz por mal. Meu pai também me batia muito.
INOCÊNCIA
E era seu pai...
EMÍRCIO
Os pais batem nos filhos porque lhes querem muito. Essa cicatriz é grande?
INOCÊNCIA
Quase não se vê.
EMÍRCIO
Deixa ver!
INOCÊNCIA
É aqui. (Puxa devagarinho a camisola que está por debaixo da saia redonda.)
EMÍRCIO
(Saliva muito e retém a respiração)
Ah!
(Inocência pega na mão de Emírcio e leva-a ao local da cicatriz. Emírcio percorre o corpo de Inocência com os dedos. Depois abraça-a delicadamente. Ouvem-se passos. É Laura que com o seu passo pesado desce as escadas. Laura Chama Inocência. Emírcio desvia-se da rapariga e procura o frasco do bicabornato enquanto Inocência compõe a camisola.)
LAURA
(À porta da saleta)
(Para Inocência) Não me ouviste? (Depois admira-se ao ver Emírcio) Não te ouvi chegar. (Repara nos lábios de Emírcio cheios de pó) Magoaste-te?
EMÍRCIO
Queimei-me, mas não é nada de mais.
LAURA
(Tocando na chávena)
Está muito quente. (Para Inocência) O que é que se passou?
INOCÊNCIA
(Muito atrapalhada)
O senhor pediu-me uma chávena de água bem quente. Eu disse que tivesse cuidado, mas o senhor doutor não me deu ouvidos.
LAURA
Vai já para a cozinha! (Para Emírcio) Deixa-me cá ver isso querido!
EMÍRCIO
Já disse que não é nada. E a culpa foi minha. Larga-me!
LAURA
Ainda por cima! Eu a querer-te bem e tu ficas zangado.
EMÍRCIO
Estás a querer discussão sem motivo. Eu pedi água muito quente que é a única coisa que me faz bem quando sinto azia. Tenho os restos do almoço a darem-me a volta ao estômago. Pronto!
LAURA
Pronto! Pronto! Já não me posso ralar com o meu marido.
(Emírcio beija-a. Laura fica com pó pregado na face. Emírcio ri. Laura apercebe-se e ri também.)
O senhor pediu-me uma chávena de água bem quente. Eu disse que tivesse cuidado, mas o senhor doutor não me deu ouvidos.
LAURA
Vai já para a cozinha! (Para Emírcio) Deixa-me cá ver isso querido!
EMÍRCIO
Já disse que não é nada. E a culpa foi minha. Larga-me!
LAURA
Ainda por cima! Eu a querer-te bem e tu ficas zangado.
EMÍRCIO
Estás a querer discussão sem motivo. Eu pedi água muito quente que é a única coisa que me faz bem quando sinto azia. Tenho os restos do almoço a darem-me a volta ao estômago. Pronto!
LAURA
Pronto! Pronto! Já não me posso ralar com o meu marido.
(Emírcio beija-a. Laura fica com pó pregado na face. Emírcio ri. Laura apercebe-se e ri também.)
Continua
Friday, October 27, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
XIX
Emírcio entra em casa sem fazer barulho e dirige-se para a cozinha. Aurora e Inocência estão a preparar o jantar.
EMÍRCIO
(Resoluto)
Inocência, traz-me uma chávena com água bem quente, para a saleta!
Emírcio dirige-se para a saleta.
INOCÊNCIA
(Aparece pouco depois)
Senhor doutor, trago-lhe a água quente.
EMÍRCIO
(Sentado numa poltrona de cabedal)
Onde está a senhora?
INOCÊNCIA
(Estendendo a chávena num pires. Tremem-lhe as mãos.)
No seu quarto, arranjando-se para o jantar. Cuidado que a água está muito quente!
EMÍRCIO
(Fingindo que bebe a água)
Uf, pelei-me! (Fazendo um esgar) Traz o bicabornato e depressa!
Inocência vai buscar o bicabornato à cozinha mas não diz nada a Aurora. Emírcio coloca a chávena em cima de uma mesinha e molha os lábios com bastante saliva não sem antes os ter mordido. Inocência está de volta.
EMÍRCIO
(De pé)
Põe-me o bicabornato nos lábios!
INOCÊNCIA
(Aproxima-se de Emírcio sem saber o que fazer)
Como é que eu faço?
EMÍRCIO
(Pega-lhe no pulso e dirige a mão da rapariga aos seus lábios, depois desta ter tirado o pó com a ponta dos dedos.)
À volta da boca!
(Inocência passa-lhe o pó pelos lábios sempre agarrada pela mão de Emírcio. Este fixa-se nos olhas dela, de um verde-azulado, herança de um longínquo flamengo seu antepassado, como acontece quase sempre nas gentes de certas freguesias que circundam Ponta Delgada.)
INOCÊNCIA
Ainda tem dor, senhor doutor?
EMÍRCIO
(Com os lábios salpicados do pó branco)
Nunca mais te doeu? (Apalpa a barriga de Inocência, que entretanto estremece.)
Continua
Thursday, October 26, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
EMÍRCIO
Mas é na solidão que o encontro. É com Ele que associo a felicidade.
VOZ
Isolado como estás nunca será feliz. Tu estás só!
EMÍRCIO
Só? Os corpos rodeiam-me.
VOZ
E eles não te dizem nada?
EMÍRCIO
Às vezes, muito!
VOZ
Começa, então, por aí.
EMÍRCIO
E para quê, se só me perturbo na contemplação?
VOZ
Compensado serás se os possuíres.
EMÍRCIO
Ganharei alguma nova dimensão estética?
VOZ
A tua sublimação é contra-natura. Impede o projecto do Criador.
EMÍRCIO
O desejo, por vezes, é um pesado encargo.
VOZ
Os desejos, quando muito elaborados, deixam de cumprir o fim para que estavam destinados. A consciência terá de corrigir os desvios, senão aqueles tornar-se-ão doentios.
EMÍRCIO
A hominização deu cabo dos primatas.
VOZ
Tu subornaste o desejo. Estás massificado.
EMÍRCIO
Eu?
VOZ
Sim!
Continua
Wednesday, October 25, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
Emírcio e o notário da Ribeira Grande atravessam o “Largo da Câmara Velha”. Ao passarem pela Igreja da Matriz de São Sebastião, Emírcio despede-se do companheiro e dirige-se para o interior do templo.
EMÍRCIO
(Ajoelha-se na central e começa a orar. Tem uma cara de quem está a pesar a dor.)
Meu Deus, esta permanência da dor que em mim se afirma é raio de flamejante forma que da magma brota para destino desconhecido. Ó Espiral da Inteligência, poupa-me o calvário das ofensas já que condenado não fui. As minhas mãos, vazias de espinhos, são motivo de ódios. Nas ruas da cidade, dou corpo à solidão e ao medo. Deixa que o Teu amor seja a escama deste ser que o desespero conquistou.
VOZ
Eis-te preocupado. Que pretendes?
EMÍRCIO
O fim da extensão infinita da insatisfação.
VOZ
Renuncias viver a tua realidade?
EMÍRCIO
Não fui para ela perdido ou achado. Mas confio na justiça divina para me aliviar este fardo que carrego comigo desde que me tornei pessoa.
VOZ
(Sussurrando)
Obter a justiça de Deus é ser-se justo. Não te tortures.
EMÍRCIO
Como posso ser justo? Como posso obter a justiça de Deus?
VOZ
Com os outros
EMÍRCIO
Os outros! Sempre os outros!
VOZ
Só com os outros obterás a razão da justiça. O caminho para Deus não é um caminho solitário.
Continuação
Tuesday, October 24, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
(Emírcio, muito nervoso, dirige-se aos três interrompendo-lhes o riso.)
EMÍRCIO
Os senhores sabem que os posso mandar prender por desrespeito às autoridades. Nós somos autoridades e temos relações! Não tolerarei mais este tipo de provocação. Conheço-os muito bem!
GIL BIGODINHO
Ó cavalheiro, por quem é! Nada disso é consigo. Estamos a preparar uma peça para o Jardim António Borges.
PAGADOR
É para a dona Inês!
MANÉ CONDUTO
“Quim la matou?”
GIL BIGODINHO
Vamos arrefecer, ó pequenos! (Para Emírcio) Vai uma partidinha de dominó a pataca como nos velhos tempos?
EMÍRCIO
(Inchando o peito com ar)
Você está a gozar-me? Ora diga!
GIL BIGODINHO
(Levanta-se como um urso ajudado pelos seus cento e cinco quilos)
Ó pequeno, tenha menos odores! Homessa! (Faz caretas e finge meter a cigarrilha para dentro da boca.) Olha sim, olha hum! (Dirige-se para Emírcio que está a tremer.)
MANÉ CONDUTO
(Coloca-se entre os dois)
Ouve cá, ó salva-vidas de trapos, tratador de dotes, mija de canarinho! Põe-te a mexer, ou já te esqueceste das vezes que te esfreguei as orelhas!
(O notário da Ribeira Grande vai andando depressa para a porta da rua e de lá começa a chamar por Emírcio. Emírcio aproveita o apelo do continental e põe-se ao fresco.)
GIL BIGODINHO
(Para o Criado)
Ó pequeno, trás mais uma rodada. E desta vez é por conta do Pagador!
GIL BIGODINHO
Ó cavalheiro, por quem é! Nada disso é consigo. Estamos a preparar uma peça para o Jardim António Borges.
PAGADOR
É para a dona Inês!
MANÉ CONDUTO
“Quim la matou?”
GIL BIGODINHO
Vamos arrefecer, ó pequenos! (Para Emírcio) Vai uma partidinha de dominó a pataca como nos velhos tempos?
EMÍRCIO
(Inchando o peito com ar)
Você está a gozar-me? Ora diga!
GIL BIGODINHO
(Levanta-se como um urso ajudado pelos seus cento e cinco quilos)
Ó pequeno, tenha menos odores! Homessa! (Faz caretas e finge meter a cigarrilha para dentro da boca.) Olha sim, olha hum! (Dirige-se para Emírcio que está a tremer.)
MANÉ CONDUTO
(Coloca-se entre os dois)
Ouve cá, ó salva-vidas de trapos, tratador de dotes, mija de canarinho! Põe-te a mexer, ou já te esqueceste das vezes que te esfreguei as orelhas!
(O notário da Ribeira Grande vai andando depressa para a porta da rua e de lá começa a chamar por Emírcio. Emírcio aproveita o apelo do continental e põe-se ao fresco.)
GIL BIGODINHO
(Para o Criado)
Ó pequeno, trás mais uma rodada. E desta vez é por conta do Pagador!
(Todos riem, o Criado dirige-se para o balcão dançando uma valsa a solo.)
Continua
Monday, October 23, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
PAGADOR
Estava ele no sétimo ano. Foi o dia em que batemos o União Sportiva por dez a zero.
GIL BIGODINHO
Marcou vários golos nesse jogo!
PAGADOR
Cinco!
GIL BIGODINHO
Era um jogador que tinha fome de bola.
PAGADOR
Agora me lembro, também lhe paguei os bolos no “Clipper”.
MANÉ CONDUTO
Querem apostar que é o outro que vai arder com a despesa?
GIL BIGODINHO
Aposto contra. E se eu ganhar, o Pagador paga as cervejas.
MANÉ CONDUTO
E se perderes, gozas com ele. (Olha para Emírcio e gargalha.)
PAGADOR
Está feito!
GIL BIGODINHO
Olha lá ó pequeno, vai mudar as fraldas! Hum, está bem. Aceito!
(O Criado dirige-se para a mesa de Emírcio)
CRIADO
Os senhores doutores tomam mais qualquer coisa?
NOTÁRIO DA RIBEIRA GRANDE
Não, obrigado. Quanto é que se deve?
CRIADO
Quatro escudos e meio.
EMÍRCIO
(Tentando muito lentamente ir com a mão ao bolso interior do casaco)
Deixe-me pagar!
NOTÁRIO DA RIBEIRA GRANDE
Não senhor, (para o Criado) ora faz favor, tome lá esta moeda de cinco escudos e guarde o troco.
PAGADOR
(Para Gil Bigodinho)
Estamos à espera...
GIL BIGODINHO
(Imitando uma máquina de costura, tem o lenço de assoar entre as mãos.)
Ó Odete, tira os alinhavos! (Depois de fingir estar a costurar enrola o lenço e atira-o para junto de Emírcio.)
PAGADOR
(Apanhando o lenço e rebolando-se de riso, depois finge uma voz feminina.)
Ai filha,hoje, estás desatinada! (Dá uma palmada na coxa)
Continua
Sunday, October 22, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
XVII
Bar Jade (situava-se à época próximo do edifício da Câmara Municipal), é fim de tarde. A clientela é a do costume: Gil Bigodinho, Mané Conduto e o Pagador.
PAGADOR
(Para o Criado de Mesa)
Quanto é que se deve?
CRIADO
Falta pagar o café e a cigarrilha de Sua Excelência. (Ri-se)
GIL BIGODINHO
(Atirando muito descansadamente para o ar uma rotunda de fumaça dirige-se ao Pagador.)
Ó pequeno, aguenta os cavalos que eu ainda não acabei. (Para o Criado) Reforça-me esta dose com um cheirinho. Esta agora! Afinal, onde estão as gordas patacas do velho?
PAGADOR
O dia foi fraco e logo por azar houve recolha de fundos inesperada.
GIL BIGODINHO
Já me estragaste o serão!
PAGADOR
Amanhã também é dia!
GIL BIGODINHO
Olha que eu para esta noite ia ficar sequioso. (Para Mané Conduto) E lá no bidé (antigo Calhau das Senhoras) como é que foi?
MANÉ CONDUTO
O Pagador chegou tarde e trouxe uma toalha à volta da cabeça feita turbante. Não surtiu efeito. Ninguém lhe ligou. Mas o Emírcio Sacristão e a mulher foram o bombo da festa.
GIL BIGODINHO
Estavam de turbante?
MANÉ CONDUTO
Pior do que isso! O filho do Sabujo estava a dar banho à mulher. Aquela que é imensa. E isto no meio da piscina para ela não encalhar. Ele abraçava-lhe a barriga.
GIL BIGODINHO
É mais fácil manobrar o “Carvalho Araújo”
PAGADOR
Bracejava fora de água e arfava, arfava tal qual um fonógrafo. Ri tanto que até fiquei cansado.
MANÉ CONDUTO
Mais valia dar banho à criada que é cá uma bela besuga. Aquilo até faz parar a digestão a qualquer pobre abade.
GIL BIGODINHO
Meu guloso! A Sabuja é cá um fóssil, mas o Sacristão ainda está bem aparentado.
MANÉ CONDUTO
No tempo do Liceu já gostava de arqueologia: esgaravatava, esgaravatava...
PAGADOR
Isso é passado! Faz parte da história.
GIL BIGODINHO
História do badalo, já que usou calções até à penugem facial.
PAGADOR
O pai poupava muito na fazenda. Que havia ele de fazer senão andar com as coxas de fora.
GIL BIGODINHO
Sempre pontual em cada badalada. Baptizados, aleluias, missas e trindades, ninguém melhor do que ele para o badalo.
Entra Emírcio acompanhado pelo notário da Ribeira Grande oriundo do Continente. Sentam-se numa mesa de fundo. Emírcio evita cumprimentar os antigos conhecidos.
CRIADO
(Em voz alta)
Os senhores doutores vão tomar?
O criado pouco depois serve-lhes café com aguardente e regressa para junto da malta.
MANÉ CONDUTO
(Olhando de esguelha para Emírcio)
Desamarrou do barco e está à deriva. (Para o Pagador) Há quanto tempo não lhe pagas um cafezinho?
Continua
Saturday, October 21, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
Continuação
EMÍRCIO
Telefone para minha casa e peça a minha mulher que mande a criadita trazer-me uma camisa lavada, pois acabei de sujar esta. Diga-lhe que não foi nada para ela não se preocupar.
FORTUNATO
(Baixando a cabeça)
Sim, senhor doutor! Esteja descansado.
(Vinte minutos depois batem à porta do gabinete. Emírcio está de camisa interior fora das calças.)
EMÍRCIO
Entra, Inocência!
(Abre-se a porta e surge Aurora)
AURORA
Trago-lhe a camisa, senhor doutor.
EMÍRCIO
Ah, és tu! Dá cá! (De mau humor) Podes ir!
(Aurora sai)
VOZ
Há dias que uma pessoa não se pode sujar. Ih! Ih! Ih!
(O silêncio cobre os ofícios)
Thursday, October 19, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
continuação
VOZ
Os filhos de ninguém não sobrevivem. É a natureza no melhor da sua acção harmonizante. Mas há os que a tudo sobrevivem, até à falta de pão, de calor, de amor...
EMÍRCIO
E quem são eles?
VOZ
Os mais aptos. Os melhores, só por essa condição.
EMÍRCIO
São rejeitados. Dificilmente ou quase nunca integrados. Transportam a enorme carga que lhes não cabe nem por merecimento nem por desejo.
VOZ
Vivem a vida, o que para outros é só existência. Outras emoções ... Outras sensibilidades...
EMÍRCIO
Emoções em outra dimensão?
VOZ
Não vivem emparedados no vale dos simples desejos. Eles são a razão sensibilizada.
EMÍRCIO
Não amarão como os demais?
VOZ
Amam do amor apenas o que deve ser amado. Amam sem sofrer.
EMÍRCIO
Eu só quero ser humano! Quero amar e ser amado. Sou simplesmente uma criatura.
VOZ
Livra-te desse discurso mitologizante dos mentores menores do nosso comportamento e deixa que se complete o ciclo do Eu-Uno com o Universo da nossa complexidade.
EMÍRCIO
Não passarei o resto da vida a tentar interpretar uma coisa tão simples.
VOZ
(Mudando de tom)
Se é assim tão simples, salpica de tinta de caneta a tua camisa e requisita-a.
(Emírcio agita-se de gozo e suja a camisa. Depois, chama O funcionário Fortunato.)
Continua
Wednesday, October 18, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
XVI
Na repartição. O funcionário Fortunato entrega a Emírcio papelada para despachar. Emírcio está sentado a uma secretária atafulhada de papéis.
FORTUNATO
Senhor doutor, eis os ofícios para assinar.
EMÍRCIO
Que é feito da Dona Vicência?
FORTUNATO
O senhor doutor não se lembra? É que ela foi ao médico com a filha. Fez-lhe o pedido ontem!
EMÍRCIO
Hoje é para ir ao médico. Amanhã é para ir à missa por alma e por aí adiante. Metem-nas cá e depois nós é que as aturamos. Isto mais parece uma instituição de caridade com prioridade para as domésticas e viúvas.
FORTUNATO
A primeira que para cá veio foi a protegida do nosso falecido conservador. O senhor ainda era muito novinho. Quem a conhecia bem era meu pai. Uma mulher com um busto de respeito, com perdão da palavra. Deseja mais alguma coisa, senhor doutor?
EMÍRCIO
Não, por agora. Depois chamo-o.
FORTUNATO
Com certeza, senhor doutor.
Emírcio retira da gaveta da secretária um pequeno espelho e mira-se. Está pensativo.
VOZ
Faz o mesmo, mete-a na conservatória. Ah! Ah! Ah!
EMÍRCIO
Ela é meio analfabeta. E nem eu tenho tanto descaramento! Aos antigos tudo era permitido. Até lhes ficava bem...
VOZ
Bem! A mim puseram-me na roda. Serviu-me de muito o orgulho dos velhos machos. Toda a vida vivi escondido de mim mesmo. Metade de mim nunca foi nada. Nunca estive na rua...
EMÍRCIO
Só o Sabujo deste a conhecer!
VOZ
Para chegar até onde cheguei, teve de ser.
EMÍRCIO
Grande coisa!
VOZ
Achas pouco! De filho da roda cheguei a pai de doutor.
EMÍRCIO
A cada um a sua grandeza desconhecida.
VOZ
Pois, fica sabendo que paguei as afrontas ao preço do silêncio. O meu sim era o sim dos poderosos. Porém, houve dias em que me soube ser quem era. Mesmo que isso não tenha explicação.
EMÍRCIO
E a minha mãe, que parte lhe coube?
VOZ
Diz antes, a mim o que me coube? Vivi uma mentira piedosa. Tomei-a de um casal estéril e muito pobre.
EMÍRCIO
Que belo aparelhamento! Afinal quem sou?
VOZ
Meu filho!
EMÍRCIO
Isso não significa nada!
VOZ
Dá espaço ao desdém, meu companheiro de berço. Tu tiveste-me!
EMÍRCIO
E durante muito tempo a repulsa dos outros.
Continua
Monday, October 16, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
VOZ
Infeliz, tu que confundes o ressonar da fémea com o seu bafo arquejante e ainda por cima casaste com a filha do Deodato da loja dos trapos só pelo pataco e pelo penacho...
EMÍRCIO
Senti paixão.
VOZ
Refreada, medrosa e bloqueada.
EMÍRCIO
Era filho do sacristão Sabujo. Havia quem me julgasse com lepra.
VOZ
Havia muito por onde escolher!
EMÍRCIO
Sopeiras!
VOZ
Por quem hoje estás perdido de amores. Quem julgas que era tua mãe?
EMÍRCIO
O destino foi-me bastante carrasco. Entrei na barca errada. Foi uma luta tão longa! Levei tanta batalha de vencida para agora não poder saborear a vitória. Sinto-me como a imagem que repela a própria sombra.
VOZ
Uma imagem de medo. Medo que nunca te incomodou.
EMÍRCIO
E é culpa minha, se de tudo me ensinaste a ter medo aparente?
VOZ
Todo o acto medroso é um mau acordo entre o Eu e o Outro. Viver sem medo consiste em harmonizar os dois.
EMÍRCIO
E o tempo que se perde! E o desgaste que se tem ao tentá-lo!
(Entra Inocência para levantar a mesa)
INOCÊNCIA
Posso levantar a mesa, senhor doutor?
EMÍRCIO
(Distraído)
Os teus pés...
INOCÊNCIA
Senhor doutor?
EMÍRCIO
(Concentrando-se)
Nada! Nada! (Fixa os olhos nos cabelos soltos da rapariga) O que vieram cá fazer os flamengos?
(Inocência levanta a mesa sem se atrever a questionar de novo Emírcio.)
VOZ
Às vezes, as narinas ajudam a ver melhor!
Continua
Sunday, October 15, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
Noite. Emírcio e Laura estão deitados na cama. Emírcio reza e ela imita-o. Vendo que ele prolonga a oração, toca-lhe com o pé.
LAURA
Mas que reza!
EMÍRCIO
Dói-me a cabeça. (Fecha os olhos e leva o crucifixo aos lábios.) Se fosse escultor só moldava pés e coxas. (Baixinho) Querida!
LAURA
(Satisfeita)
Com que então, dois números acima! (Bafeja-lhe o pescoço)
EMÍRCIO
As minhas palavras não são a roupagem do meu sentir e nesta vida de ícones quem não liberta os juramentos, prisioneiro fica da sua condição infortunada quando o ritual da cobardia espartilha a felicidade e nos condena a importar outras imagens. Imagens que afinal sempre estiveram dentro de nós como modelos de perenidade.
LAURA
Querido! (Procura colar a boca à de Emírcio)
EMÍRCIO
(Desvia os lábios e finge beijar-lhe o pescoço.)
Está escrito. Para além da oração tudo será sacrifício.
LAURA
Discursos a esta hora da noite? Será da posição?
EMÍRCIO
Invejo os amantes jacentes a quem o Mondego presta eterna homenagem. Invejo Romeu Montésquio, Píramo ... até invejo Dom Sebastião.
LAURA
Porquê, se ele não voltou?
XV
Manhã cedo. Emírcio toma o pequeno-almoço na sala de jantar, sendo servido por Inocência.
INOCÊNCIA
(Segurando a cafeteira)
O senhor doutor toma mais café?
EMÍRCIO
(Retirando da carteira uma nota de vinte escudos)
Toma, é para ti! Podes comprar o que te apetecer, mas não digas a ninguém que tos dei.
INOCÊNCIA
O senhor doutor a tanto não é obrigado. Já tive dinheiro, vestido e sapatos.
EMÍRCIO
Toma! Toma! Hás-de receber ainda mais.
(Inocência arruma a nota na algibeira do avental. Emírcio olha para a cintura da rapariga e coloca as mãos em jeito de ritual litúrgico. Inocência sai.)
Continua
Saturday, October 14, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
VOZ
Vives na órbita das exigências e é com elas que te identificas.
(Inocência revira-se na cama e as coxas douradas ficam totalmente a descoberto. O matiz da pele vai sobressaindo quando a luz do Sol vai saindo aos poucos da neblina. A luz penetra através da clarabóia e tomando o corpo da rapariga veste-a no oásis do desejo de Emírcio num contraste doloroso com a tralha que a rodeia.)
EMÍRCIO
Não me deixarei levar por esta ânsia que me arrebata.
VOZ
A cobiça armou-te uma grande teia.
EMÍRCIO
Aspirava um lugar ao Sol. Tinha esse direito! Saíra do anonimato de classe.
(Inocência cobre-se e desencanta Emírcio. Este depois de descer as escadas dirige-se para a saleta.)
XIII
(Na saleta, Laura tem um dos pés pousado no joelho do calista que lhe apara os dedos dos pés.)
EMÍRCIO
(Olhando para os tornozelos de Laura)
Ainda?
CALISTA
O senhor doutor é um homem de sorte! Veja-me esta formosura. (Aperta o pé de Laura contra o peito)
LAURA
Que tal? (Olha para Emírcio à espera de elogio)
EMÍRCIO
Calçavas dois números acima e deixavas de os desbastar.
LAURA
(Admirada)
Oh!
CALISTA
Ai que bonitos! Ficaram uma beleza.
(Emírcio sai)
LAURA
Dois dedos acima...
CALISTA
Não dê importância dona Laura. Da minha profissão percebo eu. Existem pés para tamancos, sapatos e sapatilhas. Os seus regalam a vista a quem os vê. O senhor doutor estava a brincar. Quem desdenha quer comprar.
Continua
Thursday, October 12, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
Inocência foi operada ao baço e recupera em casa de Laura. Laura ofereceu-lhe um dos seus vestidos, um par de sapatos e cem escudos. Matilde foi parar ao Asilo. Poucos dias depois da cena da pancadaria deu-lhe para ficar com tremuras e foi despachada por Laura que ficava muito abalada ao vê-la naquele estado. Emírcio sonha constantemente com Inocência. Tarde quente. Laura encontra-se na saleta com o calista. No sótão, Inocência dormita em cima da cama. Tem as coxas a descoberto. Emírcio entra devagar em casa e dirige-se para o sótão. Uma vez lá chegado abre a porta muito lentamente e estanca o olhar extasiado na rapariga.
EMÍRCIO
(Falando baixinho)
Oh engenho divino! Aquilo é um mundo que desconheço. Sabe-me à pureza da primeira masturbação; à visão da noite de luar que nunca chegou.
VOZ
Ih! Ih! Ih! Pela boa mesa, pela posição social, por um aperto de mão sem calos, por essa merda toda, perdeste tanto do que a vida te poderia ter oferecido. Nada tens e nada podes dar. E os simples e grandes apetecidos desejos em degenerados se transformaram nessa cabeça.
EMÍRCIO
Tenho muito para dar! (Passa os dedos pelo bigode) Muito mais para receber. Sou jovem!
VOZ
Isso é-te útil para o espelho. Nada te falta para a tragédia. Sempre lhe foste afeito.
EMÍRCIO
Interiormente nunca me acomodei à tragédia. A tragédia é para mim uma deliciosa descoberta.
VOZ
Que descoberta?
EMÍRCIO
Quem descobre, desperta. E tudo o que eu sabia não sabia... Não era minha a experiência. Falhar não era fácil. Tudo estava estabelecido conforme à obediência.
VOZ
E o pensamento, ele que era o único que te poderia tornar livre?
EMÍRCIO
O pensamento é um simples mensageiro sujeito aos desvios da caminhada: uma alternativa à solidão do Eu. De modo nenhum um rebelde.
Continua
Wednesday, October 11, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
EMÍRCIO
Nada, nada. Vou vestir-me. (Baixinho) Quem me dera ficar apenas pelas imagens.
LAURA
Para quê?
EMÍRCIO
A rapariga está muito mal! Precisa ser imediatamente observada pelo médico.
LAURA
Não percebo! Isso não pode ficar para a manhã?
EMÍRCIO
Não! Tu não percebeste o que se passou?
LAURA
O quê?
EMÍRCIO
Eu não te contei para não ficares preocupada. Quando a levei para o sótão, bati-lhe com muita força.
LAURA
Fizeste bem. Ela merecia-o.
EMÍRCIO
Maltratei-a e ela ficou muito inchada e delira.
LAURA
Minha mãe não lhes perdoava nadinha. Para além da respectiva tapona por qualquer má acção praticada ainda lhes tirava a comida do prato. Andavam de manhã até à noite num pé só.
EMÍRCIO
Tenho de falar ao médico e já.
LAURA
A esta hora é capaz de ficar aborrecido.
EMÍRCIO
Tenho de fazê-lo. Se for grave , posso ter muita chatice.
LAURA
Por causa da criadagem?
EMÍRCCIO
Sim, por causa da criadagem!
Continuação
Tuesday, October 10, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
X
Emírcio desce as escadas do sótão. Uma nova sensação de prazer começa a tomar forma na sua mente.
EMÍRCIO
(Falando sozinho)
Isto passa-me! Isto passa-me!
(Uma voz vem ao seu encontro. Ela é-lhe bem conhecida.)
VOZ
O que construíste à volta do teu casulo não suporta o desafio de novas sensações. Estás recheado de etiquetas e não terás forças para mudar.
EMÍRCIO
Isto já me passa! Os desafios fazem parte do meu dia-a-dia. Reajustá-los-ei sempre que for preciso. É uma questão de inteligência.
VOZ
Desmorona-se a fachada e é apenas mais um moralista que vai para o ar.
EMÍRCIO
Se calhar tens as mãos limpas? Se as esmolas falassem!
VOZ
Foi com elas que te paguei o curso!
EMÍRCIO
Eu é que sei o que passei! Sempre com faltas de dinheiro para tudo, até para comer.
VOZ
E julgas que as esmolas davam para mais? Era tudo a dividir!
EMÍRCIO
E porquê? Não eras tu o único necessitado?
VOZ
É fácil falar assim! Do mesmo outros comiam.
EMÍRCIO
Quem reparte os despojos são os vencedores e estes sobrevivem sempre com o que se apropriam.
VOZ
O que consegui dei-to. Fui um dos que repartiu os despojos. Um vencedor que não sobreviveu.
EMÍRCIO
Estás arrependido?
VOZ
Eras do meu sangue!
EMÍRCIO
Amaste-me?
VOZ
Como diziam que devia ser.
EMÍRCIO
Não é o que te estou a perguntar...
VOZ
Em tudo fui avaro, mas contigo tudo dividi. E para quê, se morri como um cão?
EMÍRCIO
No fim, não te faltou nada!
VOZ
No asilo.
EMÍRCIO
Acompanhei-te sempre que pude. Tinha a minha vida para viver. Tenho uma mulher a quem me dedicar.
VOZ
Dedicaste-te ao dote e à sogra. Trocaste-me por jarrões de sala.
EMÍRCIO
A que Senhor servir, meu Deus!
VOZ
Interesseiro! Que cópia me saíste!
EMÍRCIO
Cá dentro (Coloca a mão sobre o peito) ainda tenho interior. E se uma nova sensação buliu comigo, não sou melhor que Páris. Os impérios e os corpos valem o que se aguentarem.
VOZ
Puf! Transporta isso que dizes para a vida.
EMÍRCIO
Dá tempo ao tempo!
VOZ
Casaste com uma casa-forte e agora despertas tarde para novos compromissos. Nada mais te resta do que a obsessão. Reunirás as diferenças entre o real e o aparente que te hão-de destruir. Para mensageiro das tuas futuras desgraças nem a tolerância escarnenta e balofa das velhas prostitutas terás.
(Laura, uma gordura repousada, saída à pressa da cama, espera Emírcio agarrada ao corrimão da escada.)
LAURA
Que cara é essa, Emírcio?
Continua
Sunday, October 08, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
X
No sótão, Inocência deitada na cama tem apenas a camisa de dormir que lhe tapa parte da barriga. As coxas da rapariga estão a descoberto. Matilde tirara-lhe os calções. Os cabelos louros soltos protegem-lhe o rosto afagando-lhe os contornos. Emírcio entra a seguir a Aurora.
EMÍRCIO
(Fixa o olhar nas pernas e nos pés da adolescente)
Afinal o que é que se passa?
AURORA
(Tapando Inocência com o lençol)
O senhor doutor veja esta barriga tão inchada!
EMÍRCIO
(Sentando-se na beira da cama)
Ver o quê se estás a tapá-la. (Desvia o lençol e sente-se perturbado ao olhar as pernas de Inocência.) Tem, de facto a barriga muito inchada. Que Diabo!
AURORA
(Tapa Inocência com o lençol)
E agora?
EMÍRCIO
(Levanta-se e começa a andar de um lado para o outro)
Agora, nada. Trata de a preparar para sair e rápido!
Continua
Saturday, October 07, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
LAURA
(Para Emírcio)
Vai dormir que não é nada!
EMÍRCIO
(Para Aurora)
Afinal o que é que se passa?
AURORA
Estava a contar à senhora a desgraça.
EMÍRCIO
Que desgraça?
AURORA
É a Inocência que está muito mal. Parece uma maluquinha a falar sozinha. Tem a barriga muito inchada e mija sangue.
EMÍRCIO
(Entre o atrapalhado e zangado)
Ainda por cima, a grandessíssima!
LAURA
Por cima de quê!
EMÍRCIO
(Para Aurora)
Sobe, que já lá vou ter. (Para Laura) Vai-te deitar que vou ver o que se passa.
Continua
Friday, October 06, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
MATILDE
Quem dera que fosse já amanhã, Santo Deus!
(Inocência com as dores começa a gemer e a vomitar. Tem a urina avermelhada e está muito febril. As duas criadas ficam atarantadas.)
AURORA
(Colocando um xaile sobre os ombros)
Não é tarde nem é cedo. É para já!
(Aurora sai)
IX
Porta do quarto de cama de Laura. Aurora bate ao de leve.
AURORA
(Falando baixo)
Senhor doutor! Senhor doutor!
(Aurora bate mais três vezes. Momentos depois, Laura surge à porta em camisa de dormir.)
LAURA
Que disparate é este a esta hora da noite?
AURORA
Minha senhora, a Inocência está muito mal. Tem um grande inchaço na barriga! Está muito quente!
LAURA
E o que é que nós temos com isso!
AURORA
A senhora não sabe... ela até pode morrer...
LAURA
Ora, faz-lhe um chá forte que isso passa-lhe. Morrer, ah!
AURORA
Ela tem uma dor muito grande e geme de muita dor.
LAURA
Depois do que fez ainda por cima nos quer preocupar. Que grande estafermo. Já devia ter ido para a rua. Cá em casa é que não fica mais. Safa!
AURORA
(Em voz alta)
Ai, minha senhora, o pior é que não se sabe o que vai acontecer. Não posso ver a pobrezinha a sofrer. (Mais alto) E se nos morre? E se morre às nossas mãos. É preciso ter caridade!
(Emírcio acorda e estremunhado dirige-se para a porta.)
EMÍRCIO
O que é isto? Que falta de respeito é este?
Continua.
Thursday, October 05, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
SOUZA
Falava francês e tocava piano admiravelmente. Um primor!
MÁRCIA
Meu pai era um homem muito preocupado com a educação dos filhos. Para além de nos fazer muita companhia, fazia-nos respeitar os ensinamentos, mandamentos e os sacramentos da Santa Madre Igreja. Casei-me preparadíssima.
SOUZA
Outros tempos!
LAURA
O meu namoro foi à janela.
EMÍRCIO
Janela alta. Depois veio a confiança cá no rapaz. Tinha acabado de me formar. A janela desceu, as palpitações subiram. Um toque de mão e tudo virava dentro de mim.
LAURA
Que respeito havia naquele tempo! Do toque e dos olhares esperou-nos o altar.
MÁRCIA
Meu pai foi muito liberal. Passávamos os Verões no Vale das Furnas e dávamos passeios no Parque.(Olha para Souza que procura nos bolsos do colete o relógio.)
EMÍRCIO
(Dirige-se a Souza agarrando com uma das mãos a garrafa de Porto)
Vai mais um, caríssimo?
SOUZA
O último!
VIII
(No sótão, pela noite dentro.)
MATILDE
(Coloca uma toalha molhada em água na testa de Inocência e fala para Aurora.)
Esta pequena não está bem. Tem a barriga muito inchada.
AURORA
Aquele porco malvado, filho de sacristão lambezudo, há-de pagá-las e bem. (Aponta para Inocência) É isto coisa de um cristão?
INOCÊNCIA
(Delirando)
Mãe, olha para o Jerónimo. Chegou tão gordo... tão perfeito...
MATILDE
Que se pode fazer? É a vida! Eles podem tudo.
AURORA
Podem, uma merda! Ainda um dia destes os enveneno a todos.
MATILDE
Credo em cruz mulher!
AURORA
Se continua assim (coloca a mão na barriga de Inocência) eu vou acordá-lo.
MATILDE
Deixa isso para amanhã! Ainda te vais meter em sarilhos.
AURORA
Não é a primeira que se vai desta para melhor, por isso e por muito menos.
Continua
Wednesday, October 04, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
SOUZA
Que falsidade! Ela fala assim por despeito. A Alemanha tem dado água pela barba aos ingleses. Os fornos de que ela fala são os petardos com que a Marinha Alemã afunda os barcos ingleses.
MÁRCIA
Imagine-se só o que se inventa para denegrir as grandes vitórias militares de Hitler sobre os povos de raças inferiores.
LAURA
Ela disse para todas ouvirem que não havia raças inferiores mas sim que o que havia eram raças diferentes.
SOUZA
E os judeus? E os negros? É inglesa e basta!
LAURA
Dizem que gosta tanto de cerveja quanto os homens.
MÁRCIA
Chama-se a isto duvidar dos sábios alemães que têm investigado esse assunto com muito êxito. Ora essa!
LAURA
Os ingleses e os alemães não pertencem à mesma raça?
SOUZA
Coisas da política!
LAURA
E logo agora que está tudo proibido. Até dizem que tem desaparecido gente devido a meter-se onde não é chamada.
EMÍRCIO
Podemos estar descansados pois o nosso Estado está bem vigiado e o governo não se distrai com as manobras subversivas.
SOUZA
A Legião não dorme. A nossa alma de patriotas nunca porá em causa a nação.
LAURA
Em causa está a filha da pobre Anselma Silva. Parece que o rapaz que é tropa e veio de fora já era casado. O pai está feito num farrapo. Nem a Legião o anima de tão tristinho que anda. Então, quanto à mãe nem se fala. Nunca mais saiu de casa.
EMÍRCIO
São as liberdades sem conta. É preciso vigiar a juventude muito bem, não vá acontecer o pior.
MÁRCIA
No meu tempo acompanhava-nos sempre o “chaperon”. Era moda! Depois vieram as danças modernas e a moral foi-se por água abaixo.
SOUZA
Nem todas puderam ter educação esmerada e muito poucas é que frequentaram o colégio das “mères”.
MÁRCIA
Não é tanto assim. Havia muita rapariga que sem ser da sociedade possuia uma moral elevada e conseguiu estudos bem altos.
EMÍRCIO
E a dona Márcia até onde chegou?
Continua
Tuesday, October 03, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
Na sala de visitas, durante o café.
SOUZA
(Para Laura)
Já há muito que não comia tão bem.
MÁRCIA
(Esforça-se por conter o riso)
Durante a semana vai ser o tema de conversa com as minhas amigas. Vou torná-las invejosas e vai ser na hora do chá no Clube.
Quando Emírcio ouve falar no Clube sente um leve tremor que lhe ruboriza as faces. Souza apercebe-se.
SOUZA
Vê lá como enfeitas este jantarão, senão organiza-se uma fila das tuas amigas para se virem sentar à mesa de Laura e olha que Laura deve ter mais receitas secretas...
EMÍRCIO
Estão desde já convidados para a próxima receita de carne guisada de minha sogra que Matilde domina como ninguém.
LAURA
Eu darei os toques finais. Na próxima semana conto convosco.
MÁRCIA
Nós é que estamos em dívida.
SOUZA
(Interrompendo a conversa muito rápido)
É pena ter-nos morrido a criada. Faz-nos um grande transtorno. Senão ia ser na nossa casa o próximo jantar.
MÁRCIA
E logo agora que temos a casa cheia de gente.
LAURA
Parentes seus?
MÁRCIA
É a tia Alice que vendeu a sua casa e enquanto não arranjar outra fica a viver connosco com o marido e a filha que não há maneira de arranjar noivo.
SOUZA
A casa deles era muito húmida. E a tia Alice não pode com humidade.
MÁRCIA
Humidade?
Sousa apercebe-se que está entrando em intimidades inconvenientes e resolve dar a volta à conversa.
SOUZA
O doutor está disponível amanhã para tomar comigo um café no Clube antes de ir para a secretaria?
EMÍRCIO
(Levanta-se muito nervoso)
Certamente senhor Souza, com muito gosto!
LAURA
Temos de comemorar! Que grande alegria. E logo agora que meu pai não está aqui para nos ver.
EMÍRCIO
Tenho cá em casa um óptimo vinho do Porto. Vou abri-lo!
LAURA
É daquele que o rapaz que conseguiu emigrar te ofereceu?
Souza olha para Márcia a quem quase lhe falta o ar de tanto fazer esforço para não rir.
EMÍRCIO
Esse já acabou. O que vamos beber trouxe-o um outro a quem fiz um favor. E que favor!
LAURA
Estão sempre a incomodá-lo! São heranças, são partilhas difíceis eu sei lá.
EMÍRCIO
É a minha vida, querida!
LAURA
O trabalho é tudo para Emírcio. Com o que temos bem podia deixar de se preocupar. É muito orgulhoso!
EMÍRCIO
O futuro a Deus pertence. A guerra estalou na Europa vai para dois anos. Quem sabe se também por cá teremos de apertar o cinto? Guerra é guerra!
MÁRCIA
A guerra pouco tempo durará. Hitler não tem adversários à altura. As suas tropas são as mais fortes e tem-no mostrado ao mundo.
SOUZA
Muito bem! Muito bem! Vejo que a menina está muito bem informada e que se interessa pela política. Estou muito orgulhoso de si. (Olha para Emírcio)
EMÍRCIO
A grande Alemanha vai transformar o mundo. Tem tudo a seu favor: tecnologia, logística, disciplina...
LAURA
Na cabeleireira, a esposa de mister Season disse que os alemães estão a derreter os judeus, os decrépitos e os aleijados em grandes fornos.
Continua
Monday, October 02, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
EMÍRCIO
É bastante rija. Velha mas com saúde. No entanto, já falei ao Inácio do asilo para qualquer eventualidade que nos apanhe desprevenidos . (Para Laura) Ele disse-me para não me preocupar pois havia de arranjar lugar apesar de estarem cheios. Bastará uma palavrinha apenas.
SOUZA
O doutor está muito por dentro de tudo. Influência é só para quem pode!
EMÍRCIO
Nem sempre é fácil dizerem-me que não.
MÁRCIA
Era preciso ter muito descaramento!
LAURA
E quanto é que isso vai custar?
EMÍRCIO
Ora, ora! Aquela gente sabe até onde posso chegar...
SOUZA
Já consta doutor, já consta. Há muito pouca gente qualificada por aí. E mete-se pelos olhos dentro o modo como o seu nome circula em certos meios.
EMÍRCIO
Tenho feito os possíveis.
LAURA
Espero que não seja muito difícil substituí-la.
EMÍRCIO
Tudo se há-de arranjar conforme as nossas exigências. Criadas não hão-de faltar e por muitos anos.
LAURA
Deus te ouça!
(Matilde regressa da cozinha com a galinha.)
MATILDE
A galinha, senhor doutor.
LAURA
Serve o senhor Souza!
SOUZA
Por favor, por mim não!
(Márcia sorri disfarçadamente para Souza)
LAURA
Por quem é senhor Souza! Meu pai era sempre o primeiro a servir-se. Tínhamos, eu e minha mãe, muito respeito.
EMÍRCIO
Vamos lá, que a comidinha arrefece. (Para Matilde) Despacha-te! (É servido em terceiro lugar e começa logo a comer. (De boca cheia interpela Souza) Que tal? É a minha comida preferida. (Para Márcia) Quer a receita, minha senhora?
LAURA
Minha mãe ensinou-a à criada. E não é que ela acerta sempre. Claro que tenho de dar sempre um toque final.
SOUZA
Sem ele é que não há a tal distinção que nos faz apreciar o requinte.
(Márcia quase que se engasga. Por debaixo da mesa dá um toque com o pé no marido.)
EMÍRCIO
Divina!
MÁRCIA
Tudo tem o seu segredo.
LAURA
A batata antes de ir para o forno já vai meia cozida.
SOUZA
Logo vi! A base da família é a fada do lar. A mãe sábia que aconselha os filhos e que sob a supervisão do chefe de família dirige a casa que é o nosso templo sagrado e o sustentáculo da nação.
(Uns segundos de silêncio varrem a sala de jantar. Laura é estéril.)
EMÍRCIO
(Apercebe-se que Laura tem o lagrimito no canto do olho.)
Uma criada bem treinada é como um cavalo de corrida.
MÁRCIA
(Dando conta da situação)
Em Londres, quando estivemos em Ascott, vimos cavalos maravilhosos.
SOUZA
E que bem que saltavam.
MÁRCIA
Os lordes ingleses com aqueles chapéus altos até pareciam que iam para algum casamento.
EMÍRCIO
O governador civil quando vai na procissão do Senhor também o usa, mas segura-o na mão.
MÁRCIA
É por respeito. Os ingleses não destapam a cabeça para irem ver as corridas de cavalo.
LAURA
Vamos passar à sala de estar para tomarmos o café.
EMÍRCIO
(Espevitando os dentes com um palito de dentes que tira da carteira.)
Laura forrou os sofás com um esplêndido veludo. Vamos, minhas senhoras, vamos!
Continua
Sunday, October 01, 2006
NA SERVIDÃO DO DESEJO
Continuação
EMÍRCIO
Sabe, o Manuel da mercearia aqui do canto, onde me sirvo, é quem me escolhe o vinho que bebo. Em casa de meu pai havia muita austeridade e vinho foi coisa que nunca lá entrou. Bebi vinho pela primeira vez em Coimbra e daí para cá afeiçoei-me ao gosto. Mas sempre na medida exacta. A dignidade da minha profissão assim o exige.
SOUZA
O doutor pode acreditar que no mês passado, em casa do Castro Peralta, bebi um vinho de estalo e que tinha um óptimo “bouquet”. Era da região de Sintra. Já cá não está o Eça para o confirmar. Muito dotado e com excelente acidez.
EMÍRCIO
A primeira coisa que farei amanhã é perguntar ao meu merceeiro se este vinho é de Sintra. Só sei que é avulso.
Márcia e Laura regressam à sala de jantar e sentam-se à mesa. Souza levanta-se.
EMÍRCIO
(Para Souza)
Precisa ir a algum lado?
SOUZA
(Sentando-se)
Não, obrigado!
MÁRCIA
Bem, já está tudo mais calmo. Façamos de conta que nada se passou. (Para Laura) Este vestido fica-lhe muito bem. Toni, que lindos vestidos tem a Laura. Que variedade. Até fiquei com inveja.
LAURA
Não diga isso, que fico sem jeito.
EMÍRCIO
Vês, e tu estás sempre a queixar-te que nunca tens nada para usar. Os tempos estão maus e temos de poupar. Olha para o exemplo das inglesas que até para comerem um bife têm de ir para a fila. E há inglesas muito finas.
LAURA
Eu não sou inglesa! Fui muito bem educada. Nunca iria para uma fila. As criadas servem para alguma coisa, não acha Márcia?
MÁRCIA
Claro, minha querida. A uma senhora da sua posição não ficava bem.
LAURA
(Para Emírcio)
Vês, a posição social é coisa muito importante.
SOUZA
Uma prima dos Windsor foi fotografada em Londres numa enorme fila.
LAURA
Quem são os Windsor?
EMÍRCIO
Ingleses que têm mordomo.
SOUZA
Acho que está na altura de arranjar um.
EMÍRCIO
Eu sei vestir-me sozinho.
MÁRCIA
É muito snobismo. Perde-se a intimidade.
SOUZA
Estava a brincar. Nós, os portugueses, não somos assim tão exigentes.
EMÍRCIO
Vamos comer!
Matilde volta a servir a sopa. Márcia ainda tenta manter a conversa, mas sem sucesso. Pois tanto Laura quanto Emírcio estão como é seu hábito a comer calados.
LAURA
(Estendendo o prato a Matilde)
Matilde, já podes trazer a galinha rosada. (Para Emírcio) Lá temos de arranjar outra criada.
Matilde dirige-se para a cozinha.
EMÍRCIO
Deixa isso a meu cargo. Amanhã trato disso. Criadas é o que não falta.
LAURA
Ainda bem que temos cá a Matilde. É muito velha cá em casa e é-nos muito afeiçoada. Por gratidão pelo que lhe fizemos recusa-se a receber qualquer salário, pois já não faz o serviço como deve ser. É um peso morto.
EMÍRCIO
Não lhe pagamos, mas damos-lhe tudo: as roupas e os sapatos que Laura já não usa e tantas outras coisas. E sobretudo a comida. Tudo isto custa um dinheirão!
LAURA
Já não há gente assim! Agora é o que se vê. E ainda querem que lhes paguem os maus serviços.
EMÍRCIO
Gentinha horrorosa!
SOUZA
Já tivemos uma assim, mas coitadinha lá morreu de velhice. Foi cá um desgosto. Faz muita falta. Estava muito habituado a ela.
LAURA
Levam-nos anos de vida com o desmazelo e ingratidões.
MÁRCIA
(Para Laura)
É que ele foi criado com ela. Sentiu-lhe a falta.
LAURA
Matilde também está muito velha. O problema maior será se adoecer antes de morrer. Já não tem família.
Continua